Meu encontro (ou desencontro?) com Kim Phuc

Por Antonio Oliveira Foi tudo meio sem querer. Aquela foto, desde que vi pela primeira vez, nunca mais me saiu da mente. A menina …

Por Antonio Oliveira
Foi tudo meio sem querer. Aquela foto, desde que vi pela primeira vez, nunca mais me saiu da mente. A menina correndo sem roupas, fugindo da bomba que o Nixon mandou jogar sobre os vietnamitas. Como alguém pode fazer isto ? A dor que aquela menina sentia, já nua, pois as suas roupas haviam sido consumidas, queimadas pelo napalm. Deveria ser horrível. Era 1972. E Nixon dizendo que era uma fotomontagem. Para onde vamos?
Foi meio sem querer. Minha filha procurava informações sobre um curso que quer fazer na Unisul,  em Palhoça-SC, para uma profissão que ainda nem existe, e eu fui também esgravatar na internet para ver se via alguma coisa. E, de repente, numa página qualquer da Unisul, encontrei lá a notícia. Aquela menina estaria lá, para uma palestra. Está com 49 anos. Não é mais uma menina, já é uma mãe.
E decidi na hora que iria lá ouvi-la. Tinha tudo a ver com toda a minha vida, pois eu nunca consegui esquecê-la. Estava gravado nas minhas entranhas a sua louca corrida para fugir do napalm, com sua carne fervendo por baixo da pele. Aos nove anos. Ela nem imaginava o que seria napalm. Na foto aparecem outras pessoas também. Todos fugindo. Há até uns soldados norte-americanos filmando.Ou batendo fotos. Ou fugindo também.
Parti na quarta-feira de noite para Santa Catarina. Peguei chuva por toda a estrada. Fui lembrando da foto. E como estaria ela hoje?
Muita curiosidade. E as marcas em seu corpo? Será que ela mostraria?
Ela estaria bonita? E seu rosto?  E suas pernas? E seus sentimentos?
Minha filha era a única que estava inscrita para o auditório onde ela iria falar. Pedi a ela que inscrevesse a mim e a Tereza, enquanto tomávamos café no restaurante universitário. Em seguida, Mariana voltou para dizer que tinha dado seu ingresso para outra pessoa, pois preferia ficar conosco numa das salas onde haviam colocado telões. O auditório já estava lotado.
Entramos na sala e nos acomodamos bem próximo ao telão, uma medida providencial contra a minha parcial surdez. De repente, ela apareceu na tela. Linda. Jovem para os seus 49 anos. Sempre sorridente. Para deixar todos mais à vontade, não começou falando sobre seu sofrimento, mas sim sobre a felicidade que vivia com sua família antes das desgraças. O trabalho no campo.
Além da foto aquela, depois ela mostrou um filmezinho, que parece ser de um momento anterior, e que pode até ter sido feito por aquele soldado norte-americano que aparece. Ela identifica as pessoas que vão surgindo. Sua tia, com um primo dela nos braços também corre, fugindo do inferno. E ela diz que eles não resistiram e morreram. E Nixon disse que era fotomontagem.
O mais impressionante mesmo foi ouvi-la. Narrando o processo que a trouxe até os dias de hoje. O sofrimento em hospitais, as operações reparadoras, o exercício mental que faz para não sentir as dores que a acompanham permanentemente, até agora, principalmente quando está para chover. O caminho encontrado ao ler a Bíblia Sagrada.
Disse que teve o auxílio de um jornalista estrangeiro para ir à Alemanha Ocidental para tratamento médico em 1982. Depois, o governo vietnamita deu permissão a ela para estudar em Cuba. Na escola, encontrou o seu futuro marido, Bui Huy Toan. Phuc, quando mais acreditava que ninguém ia se apaixonar por ela por causa de suas horríveis cicatrizes. Mas ele aparentemente a amava ainda mais por isso. Os dois se casaram em 1992 e passaram a lua-de-mel em Moscou. No voo de volta, os recém-casados desertaram durante uma parada para reabastecimento e se refugiaram no Canadá.
Para justificar sua fuga, ela foi muito simples. Disse que buscava a liberdade. Na verdade, pulou o muro para o Ocidente, para os Estados Unidos.
Ela faz uma longa conversa para mostrar como agiu para esquecer o ódio e eu incrédulo me pergunto se ela esqueceu mesmo. Acho impossível. Mas ela é tão convincente com seu exemplo do copo que ela esvaziou, que eu quase mudo de ideia.
Depois ela mostra o filminho dela com o cara que atirou a bomba.
Novamente não consigo acreditar que ele não sabia. Mas ela diz que crê que ele realmente poderia não saber. E lá me vem de novo a imagem do Nixon dizendo que tudo era uma fotomontagem, que não aconteceu.
Entretanto, ela faz a imagem dos poderes que estão acima dos soldados.
E ai me surge outra dúvida, mas como, se ela fugiu para passar para o lado dos poderes que atiraram a bomba sobre ela mesma? Minhas dúvidas vão aumentando e eu me esforço para parar de pensar coisas ruins, bobagens, que não fecham na minha cabeça.  Afinal, ela é tão convincente que eu acabo me rendendo.
No final, fala sobre as obras de caridade que dirige, espalhadas por alguns continentes, sob a tutela da Organização das Nações Unidas (ONU), da qual é embaixadora da boa vontade, e eu já acho que não devemos ir abraçá-la nem tirar fotos com ela. Deixa pra lá.. Mesmo reconhecendo o alto valor destas ações sociais.
Foi tudo meio sem querer. Estou saindo, com a cabeça ainda confusa, não conseguindo encaixar tanto sofrimento que ela teve e tem, com seu sorriso permanente, o socorro que o Vietname lhe deu, a ajuda que Cuba e a União Soviética lhe prestaram, depois sua passagem pelos Estados Unidos, sua formação doutora em quatro especialidades, sua vida no Canadá. Penso também em seus filhos. O que passará pelas cabeças deles diante da história de sua mãe?
E, gente, dou de cara com ela na minha frente, deixando o prédio. Não me contive diante daquele imenso sorriso e a imagem que ela transmite de pessoa boa, sem ódio no coração e cheia de forças para fazer o bem.
Não resisti. Fiz a foto. Mas foi tudo meio sem querer. Minha mulher beija-lhe a mão. E minha filha lhe diz, no seu inglês enrolado, que gostaria de trabalhar nas suas obras sociais na África, onde ela (minha filha) viveu seus primeiros anos. Tudo muito confuso.
Foi assim nosso encontro com Kim Phuc, aquela menina que o Nixon mandou jogar a bomba em cima dela, da sua família, da sua vila, da sua vida, no Vietname, e disse que sua fuga nua do fogo com a roupa já queimada pelo napalm era uma fotomontagem. Agora eu tenho outra foto da menina, que também não vou esquecer. Eu disse a ela "gracias" pela lição de vida. Suas crenças e ideologias? Não me interessava mais.
A foto, feita no dia 8 de junho de 1972 valeu, em 1973, o prêmio Pulitzer para Huynh Cong Ut, da AP. Nesta minha história, só a bomba não foi sem querer.

Comentários