Minha mãe é Maria alguém

Por Márcia Fernanda Peçanha Martins* Impossível dissociar perfeição musical em todos os itens que esta expressão carrega da figura de Elis Regina Carvalho da …

Por Márcia Fernanda Peçanha Martins*
Impossível dissociar perfeição musical em todos os itens que esta expressão carrega da figura de Elis Regina Carvalho da Costa, que completaria 60 anos no dia 17 de março. Elis, a Pimentinha, a "Hélice Regina", era, e sempre será, o sinônimo puro do virtuosismo musical. Gaúcha rebelde que não aceitou trajar um vestido de prenda para fazer sucesso fora do Rio Grande do Sul - o que lhe assegurou críticas e antipatia do povo dos pampas -, que tinha pensamentos avançados para a época, que surpreendia a cada minuto, não sobreviveu para assistir tanta bobagem que apareceu na música popular brasileira.
Quantas caçambas não seriam usadas para guardar todo o lixo musical que proliferou desde a sua morte, em 1982? Elis, com certeza, se revoltaria ao tomar contato com o que lhe sucedeu. Com raras exceções de cantoras com o viés para a interpretação, pouca gente apareceu depois da Elis Regina para lhe fazer sombra. Os seus discos ainda são muito bem vendidos, as músicas que saíam daquela voz treinada e emocionada, cantadas por novos talentos, relembram o seu sucesso. E Elis é Elis. Ou melhor, Elis vive.
Interpretações arrepiantes, sussurantes e inimitáveis como "Atrás da Porta", "Fascinação", "Saudosa Maloca", "Mestre Sala dos Mares", "Upa, Negrinho", "Madalena", "Ponta de Areia" e tantas outras. Em cada tipo, Elis mostrava uma novidade, um novo timbre de voz, um tom mais grave ou agudo, uma interpretação de levar os sensíveis às lágrimas e soluços. Uns meses antes de sua morte, Elis Regina foi ao mais alto do sucesso, surpreendendo ao cantar de uma forma inexplicável "Se eu quiser falar com Deus", de Gilberto Gil. Sem saber da morte rondando, ela mostrava no seu último show, "Trem Azul", que uma verdadeira artista sempre pode ir além.
E em duas faixas do disco homônimo "Trem Azul", lançado postumamente, Elis Regina sempre me faz chorar. Na interpretação de "Se eu quiser falar com Deus", Elis usa e abusa da voz perfeita e treinada e arrepiada e despedaçada ao dizer que "tenho que comer o pão que o diabo amassou". No mesmo disco, em outra faixa, a Pimentinha se mostra toda sensual e canta: "E chega a hora de ir pro quarto e escutar as coisas lindas que começas a dizer, me deixas louca, e quando sinto que teus braços se cruzaram em minhas costas".
Elis Regina Carvalho da Costa era imprevisível. E temia muito o mundo que estava por vir. Assim, ao gravar um depoimento para um programa especial da Rede Globo, que gerou um disco chamado "Mulher 80", ela falava que temia que a vida ficasse pesada para a sua filha, Maria Rita, que quando Elis faleceu tinha quatro anos. E só. As entrevistas e depoimentos e brigas de Elis Regina eram sempre assim. Palavras curtas. Sem muitas explicações. Sem ficar com nada trancado, fato que também não lhe permitia colecionar amigos, apenas falsos brilhantes.
Os anos passaram, Elis, e a vida foi ficando pesada para todos. Muito pesada. Era inevitável. As guerras, as drogas, a concorrência desleal, o gosto completamente esdrúxulo tocando nas rádios FM, sabe-se lá a troco de quê. Um mundo estranho. Imprevisível. Sem grandes talentos, sem grandes cantoras, aquela mesmice. Eis que surge, no final de 2003, para arrebentar, uma pequena notável. Chamada Maria Rita, filha de uma cantora famosa, Elis Regina, e de um maestro e arranjador não menos famoso, Cesar Camargo Mariano.
E um novo cenário começou a se desenhar na tal da Música Popular Brasileira. A pequena Maria Rita lembra muito a mãe. Nos gestos, no sorriso, no jeito de portar-se no palco, na desenvoltura, na escolha do repertório e, principalmente, na chance que dá aos novos artistas, com talento, é claro. Afinal, ela é filha de "Maria Alguém" e pede "notícias do mundo de lá", mas "não consegue sair da janela" e "traz na lembrança a singela melodia que alguém fez". Por isso, Elis Regina, nem tudo ficou tão pesado e, atendendo seu pedido, na música "Aos nossos filhos", eu prometo que, "quando lavarem a mágoa, quando lavarem a alma, quando lavarem a água, lavarei os olhos pôr ti".
*Márcia Fernanda Peçonha Martins é jornalista, formada pela PUCRS, trabalhou no Jornal do Comércio, Zero Hora, agora está em assessoria de comunicação social e no Correio do Povo.M
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