Misteriosos Perfumes – I

Por J.A.Moraes de Oliveira Algumas das mais benfazejas recordações que habitam minha memória são associadas a aromas, perfumes e cheiros dos dias da primeira …

Por J.A.Moraes de Oliveira

Algumas das mais benfazejas recordações que habitam minha memória são associadas a aromas, perfumes e cheiros dos dias da primeira infância. Aromas que ficaram para sempre associados ao carinho da família ao meu redor e à certeza de que nada poderia dar errado naquele pequeno e perfeito mundo. Como o cheiro quente e penetrante de pão recém saído do forno.


Na descida da Rua Fernandes Vieira, eu segurava firme a mão da mãe, até alcançar a Padaria Três Estrelas, lá embaixo, quase na esquina do Bom Fim.


Nossa compra era invariàvelmente a mesma: pão russo e baguete italiana.


O pão russo era o grande favorito, a massa alva, sedosa com a casca crocante, coberta de sementes negras de papoula.


De volta à casa, chegava a hora de um dos poucos luxos que minha mãe se permitia na rotina diária. Na madeira nua da mesa da cozinha, ela cortava generosas fatias, barradas com a manteiga levemente salgada, que era entregue às segundas-feiras pelo leiteiro Arnaldo.


E ali - a mãe, a irmã, e eu - nos deixavámos ficar por algum tempo, em silenciosa cumplicidade, saboreando com vagar as grossas fatias do pão russo, as sementes se espalhando pela mesa e pelo chão. Mas logo a mãe voltava-se para o fogão para preparar o jantar, enquanto eu recolhia os farelos perfumados com sementes de papoula e ia para o quarto fazer as lições.


***


Naqueles tempos, a refrigeração dos alimentos não era uma preocupação nem chegava a ser uma necessidade. Na casa da rua Vasco da Gama, minha família tinha uma "Steigleder", alimentada pelas barras de gelo, deixadas muito cedo nas portas das casas.


Nos quentes verões de Porto Alegre, a pequena geladeira mal dava conta em resfriar a jarra de laranjada, as cervejas Bock de meu pai e manter a anteiga macia e cremosa. Eram dias de ingenuidade, em que os alimentos pareciam durar muito e as pessoas não se ocupavam com os prazos de validade do que comiam. Os cuidados da mãe simplesmente se resumiam em cheirar cuidadosamente cada alimento da despensa, antes de usá-lo. Ela apenas evitava os queijos tilsit do pai, que preferia manter o mais longe possível de sua cozinha - e de seu nariz.


Eu gostava de entrar furtivamente na apertada despensa, atraído pelos aromas dos alimentos que não cabiam na "Steigleder". Ficava ali, por algum tempo, admirando os paios, lingüiças e toucinhos, aspirando aquela indefinível mistura de aromas. Ainda lembro do cheiro ácido dos limões, misturado com o das laranjas de umbigo e das bergamotas, amontoados nos caixotes de maçãs argentinas.


Em uma prateleira alta, que não dava para alcançar, ficavam os patês e os queijos, que o pai comprava a cada final de mês, no "Armazem Riograndense", na Avenida Otávio Rocha. Estive ali algumas vezes, quando o pai ia comprar duas garrafas de vinho do Reno para o Natal. Ele apontava para os gavetões das especialidades da casa - tâmaras, castanhas, amêndoas e as irresistíveis passas de pêssego. Eu percorria vagarosamente os mostruários, lendo com atenção as etiquetas de papelão, tentando guardar na memória aqueles aromas exóticos.


***


Quando o mês de janeiro chegava, uma renovada festa de odores me esperava na ensombrada despensa na fazenda do avô, onde eram guardadas as carnes e os pertences dos animais abatidos. Nos longos varais de bambu,  se enfileiravam lingüiças vermelhas, chouriços e morcelas, charques e pernis, alem de miúdos de bois e ovelhas.


Eram carnes estranhas de olhar e tocar, mas nos panelões da cozinha da avó, desprendiam perfumes que impregnavam a casa e chegavam até o galpão das carroças, onde tios e peões se reuniam, na volta das lides do campo.


Famintos, eles antecipavam gulosamente o que Dona Ana Augusta mandara preparar para o almoço. Uns garantiam que seria uma cabeça de carneiro assada no forno, outros sonhavam com a fritada de miolos. Mas a maioria apostava no cobiçado panelão com a suculenta dobradinha de estômagos de boi e carneiro. O tio João Ramos, que passava por ter o melhor faro do grupo, limpava os fartos bigodes, erguia o nariz no ar e sentenciava: "Além de dobradinha, garanto que tem um panelão de marmelo vermelho no fogo".


E os outros assuntos eram esquecidos, na antecipação do demorado almoço ao redor da longa mesa de madeira, polida pelos cotovelos de duas gerações e marcada por centenas de cortes das facas de carnear.


***


Certos aromas daquela cozinha ficariam como que esquecidos em um canto  obscuro de minha memória. Mas, quando menos se esperava, eles me assaltavam em algum lugar longe de casa. Nestas ocasiões, as preocupações presentes e futuras desapareciam por algumas horas, substituídas por enternecidas emoções da infância cada vez mais distante.


Como naquele dia, em que um determinado aroma me deteve no interior da França. Atravessei a pequena praça e entrei em um restaurante de comida lionesa, que nunca vira antes. Na porta, um cartaz escrito à mão anunciava: Tripes à mode de Caen.


E me encontrei sentado à mesa, aspirando o pungente aroma do prato do dia, que fora colocado à minha frente - dobradinhas de carneiro em uma grande sopeira, acompanhadas de um arroz branquíssimo e de grossas fatias de pão caseiro.


Como que entrando em uma dobradura do tempo, revisitei antigos verões em uma longínqua fazenda que não existia mais. E degustei, um a um, os cheiros e gostos dos dias da meninice.


Antes de sair, voltei-me por um instante para a porta que levava à cozinha do pequeno restaurante. Um sopro de fantasia me envolveu - tive quase a certeza de que, se entrasse lá, encontraria minha avó Ana Augusta cozinhando as dobradinhas de carneiro e, a seu lado, um borbulhante panelão de marmelo vermelho.

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