O dentuço Eurico

Por J. A. Moraes de Oliveira* Minhas melhores horas de sonho e fantasia eram as aventuras dos heróis dos gibis que eu guardava no …

Por J. A. Moraes de Oliveira*
Minhas melhores horas de sonho e fantasia eram as aventuras dos heróis dos gibis que eu guardava no quartinho dos fundos da casa na Vasco da Gama.
Era uma pequena construção de madeira ao lado do quintal, que hospedava parentes distantes em visita a Porto Alegre. Lá havia uma antiga cama de ferro e muitas malas, caixas e guardados. Eu me apropriara de uma das caixas para guardar minha coleção de historietas em quadrinhos. Era uma caixa de madeira, decorada com o desenho de um castelo e tampa com dobradiças de latão, que eu gostava de pensar que era a arca de algum tesouro perdido.
Uma vez por semana, eu poupava o dinheiro da merenda para comprar o Suplemento Juvenil na banca de revistas do Bom Fim e voltava rápido para casa para ler a continuação das historietas. Meus heróis desafiavam os perigos com um sorriso de desafio e enfrentavam os vilões com uma frase de superioridade.
Minhas maiores façanhas até então haviam sido andar a cavalo sem medo de cair e alguns galopes mais ousados nas várzeas da fazenda. Mas eram conquistas passadas. Meu verdadeiro teste de valentia ainda estava por acontecer. E seria o dentuço Eurico que me transformaria em um herói de historieta em quadrinhos.
O Eurico era mais alto e forte do que eu e morava no caminho entre minha casa e o Rosário. Ele liderava um pequeno grupo da 4a. Série, que se divertia em desafiar os mais novos a praticar pequenas desobediências: andar sem o cinturão do uniforme, mascar chicletes no recreio ou até mesmo ler os tais livros "impróprios para menores".
Eurico logo se concentrou em mim, dizendo em voz alta que eu tinha medo de desobedecer ao irmão regente. O danado parecia conhecer minhas fraquezas e sabia como ninguém tirar vantagem delas. Na verdade, eu morria de medo era dele e de seu grupo de marmanjos.
Para evitar as proximidades da casa do Eurico, passei a tomar o percurso mais longo para o Rosário. Percorria meu caminho pisando firme, imaginando possíveis vinganças contra Eurico e sua turma. Eu devia parecer muito assustado, pois a mãe percebeu a minha mudança de caminhos, logo intuindo que alguma coisa estava errada. Seus grandes olhos negros me acompanhavam pela casa, aumentando meu medo e aflição. E não demorou muito para acontecer o que eu temia.
Uma noite, após o jantar, meu pai desligou o Telefunken de 16 válvulas e me chamou para junto dele. Começou perguntando como estavam as notas no colégio. Balbuciei alguma coisa, mas meu pai não era fácil de enganar. Logo eu estava debulhando meu drama, enquanto ele alternava seu ar grave com um meio sorriso no canto da boca. Quando acabei confessando que estava com medo do Eurico, a voz de meu pai ficou grave e não mais havia sorriso em seu rosto.
Disse que ninguém podia fugir para sempre de seus problemas e que eu tinha que enfrentar meu medo. E que preferia que eu voltasse para casa com o nariz quebrado do que continuar fugindo. Naquela noite, quase não dormi e acordei com raiva por ter parecido covarde diante de meu pai. Engoli calado o café-com-leite e o pão-com-manteiga, sentindo o olhar de minha mãe me interrogando em silêncio. O pai me olhava por sobre o jornal e também não dizia nada.
Tomei o caminho da João Telles, mas não encontrei nem o Eurico nem seus amigos. Entrei na sala de aula e notei que estava com os dois punhos cerrados, as unhas ferindo as palmas das mãos. Na saída, quase esquecido de meus medos, tomei o caminho de casa com o Feijó e o Dieffenthaler. Na esquina da Barros Cassal, esbarramos com a turma do Eurico. Os amigos ainda tentaram desviar para a outra calçada, mas entreguei-lhes livros e cadernos e avancei para cima do Eurico.
Alguns segundos depois, tomado de surpresa, vi o Eurico caído no chão com cara de choro e um filete de sangue escorrendo pelo nariz. Sem uma palavra, recolhi livros e cadernos, retomando o caminho de casa. Passado algum tempo, ouvi as gargalhadas do Feijó, que pulava de alegria. Enquanto isso, o franzino Dieffenthaler me olhava com estranheza, sem saber o que dizer.

Cheguei em casa e fui lavar as mãos e o rosto, que ardia como se estivesse com febre. Na mesa do almoço, meu pai não disse palavra, mas tive a certeza que ele sabia exatamente o que havia acontecido.
Minha mão direita ainda doía bastante. Olhei disfarçadamente e vi, entre os nós dos dedos, a marca da dentuça do Eurico.
* J.A.Moraes de Oliveira é jornalista e publicitário.
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