O dia em que Ricardo Chaves parou o trânsito

Por Eliziário Goulart Rocha Repórteres fotográficos costumam encarar qualquer desafio na busca da melhor foto. Não importam os riscos, que por vezes são grandes, …

Por Eliziário Goulart Rocha
Repórteres fotográficos costumam encarar qualquer desafio na busca da melhor foto. Não importam os riscos, que por vezes são grandes, ou aos embaraços a que tenham de se expor. A coragem e a criatividade são pré-requisitos da profissão. Alguns exibem ainda o virtuosismo do artista, a precisão do cirurgião e o bom gosto do esteta. Este é o caso de Ricardo Chaves, o Kadão, gaúcho de boa estirpe, com vitoriosa passagem pelo exigente mercado de São Paulo e reintegrado à paisagem do Sul para benefício dos leitores de Zero Hora, na qual divide o tempo entre o ofício nas ruas e a chefia do departamento fotográfico. Na hora do fechamento, corre pela redação com a desenvoltura de um garoto cujo peso nem de longe parece integrar o clube dos três dígitos.
No final de 1995, fomos, Kadão, Guaracy Andrade - por sinal, outro grande fotógrafo, hoje também colunista social - e eu cobrir a decisão do mundial interclubes entre Grêmio e Ajax, em Tóquio. Depois do jogo, Guaracy retornou com a delegação tricolor enquanto Kadão e eu seguíamos viagem para o Vietnã, onde produzimos uma série de cadernos especiais para ZH. Volta e meia ele respirava fundo e dizia "meu, estamos sob o céu que nos protege", em referência ao magnífico filme de Bernardo Bertolucci (de 1990, baseado no livro homônimo de Paul Bowles, de 1949) ambientado no sudeste asiático.
Um dia, estávamos em Hanói, a paupérrima capital vietnamita, quando Kadão decidiu fazer uma foto do movimento numa das principais avenidas da cidade, com aquele mar de bicicletas e lambretas que estamos acostumados a ver em filmes. O problema é que não havia nenhum prédio muito alto nas redondezas, e mesmo os de dois, três andares, eram meio inacessíveis. Não conseguíamos explicar aos temerosos moradores ou lojistas que se tratava de uma simples foto. Paranóias de país comunista.
Me distraí por alguns segundos, enquanto acendia um cigarro e conversava com nosso intérprete. Quando olhei em volta, Kadão escalava um trêmulo poste de madeira, do topo do qual pretendia obter a tal foto. Tentei interferir, mas o máximo que ele me concedeu foi segurar a bolsa com o pesado equipamento enquanto ele subia como se estivesse diante de uma simples escada. Ele conseguiu o que queria, mas não resisti à tentação de dizer que espalharia história diferente: de estatura alta, com mais de 100 quilos, suspensórios e um portentoso charuto à boca, em uma terra de gente miúda, Kadão não pôde fazer a foto do trânsito porque o trânsito parou diante de tal visão.
Na longa viagem de retorno (Saigon-Kuala Lampur-Amsterdã-Paris-São Paulo-Porto Alegre), depois de uma curta permanência na capital holandesa à espera do vôo da Varig rumo a Paris e, depois, ao Brasil, na qual tivemos de nos submeter a atividades tão laboriosas e horríveis quanto beber imensos copos de Heineken legítima em pubs com calefação perfeita (a temperatura estava próxima de zero graus) ou visitar o Museu Van Gogh, passamos por uma situação inusitada. Fomos embarcados num DC-10 da Varig, mas a decolagem não acontecia. Uma hora depois, falaram em um problema no trem de pouco. Mais uma hora e veio a notícia oficial. A aeroporto de Paris entrara em greve e não autorizaria a aterrissagem. Por outro lado, as autoridades de Amsterdã nos consideraram embarcados e até já fechara aquela ala do aeroporto. Ou seja, estávamos presos no avião por tempo indeterminado (foram algumas horas), sem comida, bebida ou cobertores, pois a aeronave seria abastecida em Paris.
Diante da situação, autorizaram o fumo ao longo do tubo de embarque, que era nosso limite de movimento. Fumei dois ou três, competindo na produção de fumaça com a atriz Cissa Guimarães, que perderia um importante contrato comercial se o avião não decolasse ainda naquela madrugada. Ao voltar para o interior do avião, encontrei Kadão esticado nas poltronas do meio, dormindo a sono solto e roncando a plenos pulmões. Peguei um livro, mas me desconcentrei da leitura quando uma mãe e um filho a caminho do banheiro pararam para observar meu companheiro de viagem. Mais uma vez, distorci a história e disse para ele que várias mães haviam trazido crianças para vê-lo. "Pô, meu, e você deixou seu parceiro ser exibido como uma orca encalhada?" Kadão sempre se permitiu brincar com o próprio peso porque é uma pessoa extremamente caprichosa e elegante. O mesmo capricho e a mesma elegância que sempre imprimiu a seu trabalho.
Dedicado a Ricardo "Kadão" Chaves
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