O escândalo do lucro em bilhões

Por Carlos Chaparro O XIS DA QUESTÃO ? Assim como se equivocam no tom trágico dado à crise política que explodiu no gabinete do …

Por Carlos Chaparro
O XIS DA QUESTÃO - Assim como se equivocam no tom trágico dado à crise política que explodiu no gabinete do ministro José Dirceu, os jornais também erram feio ao tratarem como festa nacional os lucros espantosos obtidos pelos bancos, em 2003. Pelo menos, deviam se perguntar: como é possível obter lucros tão escandalosos, num país que tem o Fome Zero como principal programa de governo?
1. Crises à vista e crises ocultas
A descoberta de um corrupto sentado em cadeira nobre, na mais poderosa ala do Palácio do Planalto, constitui, evidentemente, assunto para muitas páginas impressas e horas de reportagens na televisão e no rádio - por um longo período. Solenes e pesados editoriais já foram escritos, muitos outros haverão de ser feitos, porque complicados, de efeitos altamente desorganizadores, serão os desdobramentos político-partidários deste episódio, nos cenários da luta pelo poder. Luta pelo poder? Isso mesmo. A crise não está na exposição pública de um surpreendente caso de corrupção, mas no seu aproveitamento como ingrediente e pretexto para batalhas políticas.
A crise, em si, é boa. Para o regime e para o sistema político, ela funciona como processo de purga, certamente incômodo, mas salutar. Faz bem à alma cívica ver em operação os mecanismos de defesa ética e moral do sistema democrático. Quando tudo terminar, a saúde política da Nação estará melhor. Abençoada crise, portanto. Deveria, até, receber da imprensa tratamento festivo. Afinal, um tumor foi descoberto e está em andamento a cirurgia de extirpação. Mas, ao contrário, é de tragédia o tom do noticiário sobre as trapalhadas em que se meteu esse tal de Waldomiro Diniz.
A meu ver, trata-se de um equívoco. E, assim como se equivocam no tom trágico dado à crise política que explodiu no gabinete do ministro José Serra, os jornais também erram feio ao tratarem como festa nacional os lucros espantosos obtidos pelos bancos em 2003. Aí, sim, no lucro dos bancos está manifestada a mais importante e complicada crise brasileira: a da incapacidade nacional de distribuir renda.
2. Escândalo em bilhões
Num país que declara e aceita o Fome Zero como o mais importante programa de governo, é um escândalo a notícia de que os sete maiores bancos lucraram R$ 13,4 bilhões (manchete dos grandes jornais diários a 18 de fevereiro). O escândalo ganha temperos de escárnio na exuberância de outra manchete, esta, do Estadão: Presidente do BB diz que lucro "é uma delícia" (OESP, página B4, 18/2/04). É o que igualmente deve estar pensando o presidente do Banco Central, em festa com um lucro de R$ 31 bilhões, bem maior que o dos sete maiores bancos, juntos. Ora, pergunto eu, Banco Central existe para gerar lucro?
Os jornalistas que redigem e editam tais títulos e matérias parecem não perceber o assunto que têm em mãos. É a conclusão a que se chega com a leitura dos jornais. Como que hipnotizados pelo brilho ufanista dos sucessos bancários - como se isso fosse o sucesso do país -, fogem ao dever de estabelecer nexos de causa e efeito dentro do próprio noticiário que diariamente editam.
Nas edições desse mesmo dia, em que os lucros dos grandes bancos iluminaram o alto das páginas, e nas edições dos dias seguintes, havia notícias escondidas, envergonhadas, que indiretamente tratavam do mesmo assunto, mas propondo sentidos opostos. Coisas como estas:
Dívida Pública cresce e chega a R$ 737 bilhões; Copom mantém cautela e juros em 16,5%; Aumento de mensalidade escolar supera inflação; Pagamento de Renda Mínima atrasa em São Paulo e teve valor reduzido; Renda do trabalhador cai 0,4%.
É o noticiário dos lados onde escasseia o dinheiro que tanto sobra nos bancos.
3. Mecanismo perverso
Por que os bancos ganham tanto dinheiro, e tão facilmente?
Pouco entendo de economia. Mas arrisco um caminho simplista para elucidar a incógnita. Se o bolo do dinheiro é um só, de proporções constantes e controladas, então, o aumento fantástico do quinhão conquistado pelos ricos (simbolizados nos bancos) só se pode dar pela redução injusta da fatia que deveria caber aos pobres. Sei que não digo nada de novo. Capitalismo é assim mesmo. Mas o que espanta, no caso brasileiro, mais do que o aumento do fosso entre pobres e ricos, é o tom festivo do noticiário que anuncia o lucro fantástico do sistema bancário. Trata-se, claramente, do sucesso de um perverso mecanismo de transferência e acumulação de renda, generosamente azeitado pelas políticas e omissões oficiais.
De onde vem tamanho lucro? Fiz a pergunta a um especialista, que já foi executivo de banco e hoje atua como consultor no mercado de capitais. E ele não titubeou: "O enorme lucro dos bancos vem, principalmente, da compra de títulos do governo federal. Como, devido aos juros altos, é inviável colocar dinheiro nas empresas, os bancos compram os papéis do governo, tirando vantagem dos juros em alta. Foi o que aconteceu em 2003. Como havia a perspectiva de uma queda progressiva da taxa oficial de juros, os bancos investiram pesado nos papéis pré-fixados, a juros altos. Ou seja: quanto mais lucram os bancos, maior é a dívida do governo. E essa é uma engrenagem que se auto-alimenta. Como o governo não tem dinheiro para resgatar os papéis, troca-os periodicamente por outros, usando continuamente o atrativo de altos juros pré-fixados. É o que de novo acontece, no início de 2004". E, na outra ponta, acrescento eu, o lucro com os juros altos amplia-se, nos empréstimos e financiamentos concedidos aos miseráveis que sobrevivem no dia-a-dia endividado.
Outra fonte de lucro livremente usada pelos bancos é a cobrança de taxas por serviços. Tostão por tostão (a gente nem dá por isso), o nosso dinheirinho de clientes vai passando para os cofres gulosos dos banqueiros. O especialista com quem conversei me garante que essa fonte de renda cobre, com folga, as despesas administrativas dos bancos.
Entretanto, o desemprego não recua, a capacidade de investimento governamental é vergonhosamente limitada, as prefeituras estão falidas, a saúde pública mendiga recursos, a educação padece, os aposentados só têm razões para o desalento, as estradas estão abandonadas - e por aí vai.
Como se isso fosse pouco, ainda temos os Waldomiros da vida, multiplicados, quais clones, pela cultura empedernida da corrupção.
4. Argumento dos fatos
Na história suja do Waldomiro, de explosivos ingredientes, e como não podia deixar de ser, a cobertura jornalística está dividida em duas frentes: a das investigações policiais, que tem ritmo técnico, tendendo à prudência, e a dos confrontos políticos, com oponentes espertíssimos, empenhados na luta pelo poder a qualquer custo. O risco de instrumentalização do relato jornalístico é altíssimo. E a tentação de enveredar por deduções especulativas é enorme, estimulada por pelos lances nem sempre explícitos dos oponentes interessados. Mas como, em tempos de turbulências cabeludas, como esta criada pelo Waldomiro, os cidadãos precisam de uma imprensa mais do que nunca confiável, e a reclamam, há que praticar, nas redações, a velha e sábia crença no rigor dos fatos.
Em crises deste porte e com tais contornos, o grande argumento jornalístico é o dos fatos.
* Artigo publicado originalmente no site www.comunique-se.com.br

Comentários