O mea-culpa de Zuenir Ventura

Por Luiz Cláudio Cunha Alerta geral: corra à livraria mais próxima e compre o livro *Minhas histórias dos outros, de Zuenir Ventura. Nas páginas …

Por Luiz Cláudio Cunha

Alerta geral: corra à livraria mais próxima e compre o livro *Minhas histórias dos outros, de Zuenir Ventura. Nas páginas autobiográficas de um dos mais elegantes e importantes jornalistas brasileiros a partir da segunda metade do século 20, você vai repassar histórias, fatos e personagens que marcaram alguns dos episódios marcantes das últimas quatro décadas no Brasil.


Aos 74 anos, Zuenir, hoje colunista de O Globo, depois de passagens marcantes pelas redações da Tribuna da Imprensa, Correio da Manhã, Diário Carioca, Visão, Jornal do Brasil, Veja, IstoÉ, entre outras, faz uma deliciosa viagem de memória profissional que começa em 1961 na crise da renúncia de Jânio e termina em 1997, com a relação politicamente manipulada do documentarista João Moreira Salles com o traficante de drogas Marcinho VP.


Nesse entreato, Zuenir é o repórter e testemunha de momentos distintos. Surge como o involuntário tradutor de francês do então vice-presidente João Goulart, em Paris, ainda sem saber como voltar ao Brasil de ressaca pela palhaçada janista. Reconta o drama da Aids mostrando a cara para Cazuza e o irmão do Henfil, relembra o surto de violência militar que matou o amigo Vladimir Herzog nos porões da tortura do DOI-CODI e o fiasco da bomba que explodiu antes da hora no colo dos militares terroristas no frustrado atentado do Riocentro, em 1981.


Confessa que privou o mundo de ver a calcinha branca de Jacqueline Kennedy em Viena, que ele fotografou sem querer num filme que ele, inexplicavelmente, extraviou. Antevê, no início dos anos 1980, a guerra do pó e a violência urbana que deformaria, para sempre, a face amorosa de um Rio de Janeiro que sobrevive apenas nas letras nostálgicas da bossa nova. E remonta, com a segurança da intimidade e a doçura dos sábios, os momentos de loucura e genialidade que marcaram os derradeiros dias de Glauber Rocha e Darcy Ribeiro, dois ícones da cultura brasileira mais rebelde e comprometida com seu povo.


Mesa de bar


Esse é Zuenir, o repórter sensível que estava sempre no local certo, na hora certa, no veículo certo, para seu texto certeiro e elegante. Seu livro de memórias, agora, mostra que Zuenir também é o profissional de atitudes certas.


Vinte anos depois, num mea-culpa raro em profissionais de sua grandeza, Zuenir gasta dez páginas no capítulo "Um suicídio mal contado" para confessar o estranho pacto de silêncio da imprensa em 1984 envolvendo a morte do escritor Pedro Nava, o maior memorialista do país.


Aos 80 anos, às vésperas de seu sétimo livro, Nava disparou um tiro de revólver calibre 32 na cabeça, ao final de um domingo, numa praça do bairro da Glória. A explicação de seu gesto estava num telefonema recebido duas horas antes: um homem do baixo mundo do meretrício gay de Copacabana estava chantageando Nava, que lhe encomendava cenas de homossexualismo.


Esta era a razão do suicídio - mas Zuenir, então chefe da sucursal carioca de IstoÉ, chocado com a revelação, decidiu não publicar. Lembra que trombou de frente com Artur Xexéo, seu subchefe de redação: "Se a versão está circulando pelas redações, se os jornalistas sabem, por que o leitor não pode saber, Zuenir?", reagiu Xexéo.


O cartunista Ziraldo, amigo de Nava e de Zuenir, de passagem pela sucursal, apostou no silêncio: "Mas vocês não vão publicar, não é?". Xexéo, lembra Zuenir, voltou à carga: "Por que o Ziraldo pode ter o privilégio de ficar sabendo de toda a história e o leitor, por não ser amigo do Zuenir, não tem esse direito? Tem que publicar!". Ziraldo tentou se defender com uma frase que pode render horas sem fim de debates em mesas de botequim e redação: "Há notícias que não precisam ser dadas, e a missão do jornalista não é dar todas as notícias".


"Preconceito social"


Na época, o autor deste artigo era chefe da sucursal da IstoÉ em Brasília. Como Xexéo, fiquei indignado com o privilégio e com o pacto de silêncio, que se estendeu à revista Veja, como conta Zuenir. Desabafei com o chefe de redação em São Paulo, Ricardo Setti, que também defendia a publicação. "Setti, mal comparando, é como se os jornalistas, preocupados com a repercussão de um tiro no peito, tivessem pactuado em agosto de 1954 uma versão de que Getúlio morrera escorregando na banheira? É um absurdo não contar o que aconteceu", argumentei.


Com a maior honestidade, Zuenir relembra a firme posição de Setti, voto vencido na época, que ainda hoje sustenta: "Não tenho a menor dúvida de que violamos nosso dever de jornalistas e deixamos de cumprir nossa missão para com o leitor. O preconceito foi mais social do que sexual. Poupamos o Nava por ele ser o Nava. Se fosse um modesto jogador de futebol ou cantor, teríamos publicado".


Outro colega de IstoÉ citado por Zuenir, Humberto Werneck, que preparava um perfil de Nava pouco antes do suicídio, foi ainda mais duro: "Sinto vergonha das futuras gerações, da geração de meus filhos, sinto vergonha do futuro biógrafo de Pedro Nava quando fosse remexer no assunto, já distante da circunstância: eu era jornalista naquele momento e fui a favor de sonegar ao leitor uma informação importante".


Ao reabrir esta velha e intocada ferida, alinhando os depoimentos de quem discordava dele na época, Zuenir purga o pecado de uma discussão ética que às vezes embaralha o jornalismo: a imprecisa fronteira entre o público e o privado. "Acho que pode ter pesado muito, na nossa decisão, o moralismo da época e o "preconceito social", além do individual de cada de um de nós", reconhece Zuenir, com a humildade que só um mestre do jornalismo pode exibir.


Este é o Mestre Zu. Orgulho da raça.


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 *  Minhas histórias dos outros, de Zuenir Ventura, 279 pp., Editora Planeta, São Paulo, 2005. R$ 40. 

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