O MG cor-de-chumbo

Por J.A.Moraes de Oliveira Nas tardes dominicais do outono de Porto Alegre, o passeio da família sempre terminava no bar 24 de outubro, na …

Por J.A.Moraes de Oliveira

Nas tardes dominicais do outono de Porto Alegre, o passeio da família sempre terminava no bar 24 de outubro, na Praça Júlio de Castilhos.


Gostavam de sentar-se em uma pequena mesa no terraço, admirando a luz que se infiltrava entre os jacarandás, fazendo brilhar os polidos paralelepípedos da rua 24 de outubro. Nas calçadas da praça, casais passeavam de braços dados e crianças corriam ao redor do chafariz.


Eram tempos em que as pessoas se vestiam formalmente, mesmo para um breve passeio pelo bairro. Seu pai usava terno, dispensando o chapéu Ramenzoni e a gravata de seda, comprada em Buenos Aires. A mãe vestia um vestido de mangas longas e arrumava o cabelo em uma rede, como se fôsse a uma festa.


Era um modesto ritual, mas quase festivo, quando o pai podia descansar das agruras da semana, observando com deleite a família saborear salada de frutas com sorvete de creme, que era seguida de coloridos copos de refresco de groselha.


A vida corria suave, as semanas e os meses passando sem pressa. Sob aquele dourado sol de outono, o mundo parecia perfeito.


Quando todos estavam servidos, o pai acenava em direção ao balcão, para seu amigo Helmut. Logo chegava uma dose de Jägermeister gelado e uma garrafa de cerveja escura Bock. Que eram acompanhados de um prato de salsichas brancas Weisswurst, salpicadas com mostarda picante de Blumenau.


Enquanto alternava goles de schnapps e cerveja, seu pai o provocava a adivinhar as marcas dos automóveis que deslizavam silenciosamente pela 24 de Outubro. Sem hesitar, ele recitava as marcas que conhecia - Chevrolets, Fords e Mercurys.


Mas logo surgia um carro de marca mais difícil de reconhecer, como os Pontiacs, Buicks ou Studebakers. Aí, ele sentia-se frustrado, tentando ler a marca nas laterais, o que era sempre difícil, para diversão da sua irmã, que não via graça naquele jogo de pai e filho, do qual não podia participar.


***


Na rua Vasco da Gama, raras famílias possuíam carro e as casas não tinham garagens. Para sua felicidade, a única garagem do quarteirão era no casarão ao lado do portão de sua casa - ali estacionava o carro mais charmoso de todo o bairro.


Seu dono chamava-se João Augusto, um jovem de família rica, que se vestia com capricho, sempre com sapatos de camurça e um impecável pullover de cashmere cor-de-caramelo, que, dizia-se, fora comprado em Londres.


Mas não eram as roupas elegantes do vizinho que alimentavam sua secreta inveja - era o MG cor-de-chumbo, que ficava a maior parte do tempo guardado na garagem.


Nos finais de tarde, quando João Augusto chegava, os meninos da Felipe Camarão estavam brincando com seus carrinhos de lomba com rodas de rolimãs. Ele estacionava cuidadosamente o MG sob os floridos jacarandás e esperava os carrinhos passarem velozes, guinchando no pavimento irregular até lá em baixo, na curva da rua.


Então, apertava o botão de start e o reluzente MG deslizava até o escuro da garagem. Ele descia, fechava a capota de lona e arrumava alguns fios de cabelo. João Augusto gostava de cuidar bem daquele carro. Vestia um macacão branco e passava horas polindo a lataria e os cromados. Às vezes, ele notava seu olhar de admiração para o carro. Sorria, dava um leve aceno de mão e fechava a porta da garagem.


Ele transformara João Augusto em seu modelo de elegância e, seu carro, o inacessível objeto de sonhos. Se fantasiava a bordo do MG, com a capota abaixada, subindo a Ramiro Barcelos, na hora da saída das meninas do Bom Conselho.


Mas aquelas fantasias duraram pouco. Acabaram na manhã em que seu pai contou à mesa do café uma estória triste sobre o nosso vizinho. O sócio de João Augusto nos negócios de importação havia fugido para o Uruguai com o dinheiro e ele fora obrigado a fechar a empresa e vender seu precioso MG.


Duas semanas depois, um discreto Austin 40, preto, apontou na esquina e parou diante da garagem ao seu lado. Era João Augusto, que usava um discreto terno escuro.


Ele entrou com o Austin na garagem e quando o notou parado na calçada, fez um aceno curto, mas não sorriu.


Por mais que procurasse nas ruas e nas esquinas de Porto Alegre, nunca mais viu o MG cor-de-chumbo.

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