O Negro Edu

Por J.A.Moraes de Oliveira Ninguém sabia de sua origem nem conhecia sua família. Ele era um dos agregados da fazenda e uma espécie de …

Por J.A.Moraes de Oliveira

Ninguém sabia de sua origem nem conhecia sua família. Ele era um dos agregados da fazenda e uma espécie de filho adotivo de meus avós. Fazia os pequenos serviços da casa e todos gostavam de tê-lo por perto. Tinha um gênio afável e estava sempre sorrindo com seus dentes muito brancos. Todo mundo o chamava de Negro Edu.


Meu tio Chico dizia que poucos sabiam afiar uma faca de carnear como ele. E também tinha o dom de acalmar um cavalo chucro, passando a mão em sua cabeça, alisando as crinas e sussurrando alguma coisa em suas orelhas. O bicho relinchava, arregalava os olhos, ficava calmo e os domadores podiam chegar de mansinho para o encilhar.


O que mais me divertia no Edu eram suas habilidades como contador de causos. Ele ficava em seu canto, nas rodas do galpão, ouvindo as estórias  que os mais velhos contavam noite adentro. Depois, as passava adiante como se fossem suas, inventando detalhes e personagens que ninguém imaginava de onde ele tinha tirado.


Ano após ano, ele era encarregado de buscar minha mãe, minha irmã e eu no cais de Tapes e de nos levar de volta, ao final das férias de verão. As monótonas viagens na charrete verde, através dos campos intermináveis, eram animadas pela alegria do Edu. Ele começava cantarolando velhas milongas e guarânias que tinha aprendido em algum lugar. E depois vinham seus causos, sempre envolvendo cavalos - e que a mãe apelidara de cosas de trapichero, pois não acreditava em uma só palavra do que ele dizia.


O negro Edu nunca terminava os causos que contava. A cada vez que ele descia da charrete para abrir as cancelas do caminho, voltava sem lembrar onde tinha interrompido sua estória. E começava uma outra, completamente diferente, para o nosso divertimento e a impaciência de minha mãe.


Edu sabia de tudo das artes e lides campeiras, que aprendera desde criança, bem ensinado por meu avô e pelos tios mais velhos. Ele tinha especial prazer em preparar a charrete verde para nos levar a passeio até a vila das Dores. Passava a manhã preparando o arreamento adornado com anéis de prata e escovando os pelegos com que forrava o banco da charrete.


Ele gostava daquelas pequenas viagens, mas seus horizontes nunca foram além da Lagoa dos Patos, que ele olhava demoradamente, enquanto nos esperava no trapiche de Tapes.


Às vezes, Edu vencia a timidez e nos perguntava como era a vida na Capital - que era como ele se referia a Porto Alegre - e permanecia calado, olhando para o céu com ar sonhador, enquanto minha mãe descrevia detalhes do nosso cotidiano na cidade.


Certo dia, por maldade, perguntei-lhe se gostaria de conhecer a Capital. Ele abriu um grande sorriso e retrucou que não tinha dinheiro para viajar e que o Coronel Picurra nunca lhe permitiria se afastar da fazenda. Minha mãe se enternecia com os sonhos impossíveis do Edu, mas calava, pois sabia da severidade patriarcal com que o meu avô comandava a fazenda e a vida de todos os que viviam sob seu teto.


Em um certo verão, tivemos uma surpresa e um pressentimento ruim, quando um outro peão nos aguardava no trapiche de Tapes. Torcendo o chapéu nas mãos nervosas, ele contou que havia acontecido uma tragédia na fazenda. A charrete verde caíra em uma vala funda, quebrando o eixo e o pescoço do negro Edu.


Minha mãe permaneceu sem dizer nada, enquanto minha irmã soluçava baixinho. A viagem até a fazenda foi triste e vazia, sem as cantorias e os causos do Edu.


Perguntei à minha mãe se ela conhecia o final das estórias que ele contava. Sua resposta, de um jeito calmo e conformado, foi que "as estórias dele eram como a vida - a gente sabe como começam, mas não sabe como terminam".


Quando chegamos à fazenda, eu e minha irmã corremos até o galpão das carroças e encontramos a charrete verde em um canto, caída de lado, sem uma roda e com o eixo quebrado.


Segurei um soluço e apertei forte a mão de minha irmã. Aquela foi mais uma estória da qual o negro Edu também não soube contar o final.

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