O ódio e a intolerância nos tempos da pós-verdade

Por Ananda Müller, para Coletiva.net

Dos termos e expressões que nos últimos anos passaram a nortear as redações em nível global, convido os leitores a elegerem algum mais presente do que 'pós-verdade'. Conforme o dicionário Oxford, editado pela universidade britânica de mesmo nome, o substantivo "se relaciona ou denota circunstâncias nas quais fatos objetivos têm menos influência em moldar a opinião pública do que apelos à emoção e a crenças pessoais". A mesma instituição escolheu o vocábulo como a palavra do ano de 2016, tendo em vista o aumento vertiginoso de seu uso e busca em plataformas de internet como o Google.

Do ponto de vista prático, a pós-verdade pode ser experimentada de forma especialmente contundente nos episódios da eleição do presidente norte-americano Donald Trump e também no caso do Brexit - a saída do Reino Unido da União Europeia. Em ambas as ocasiões, ficou evidente o uso e proliferação das chamadas 'fake news' para o alcance dos objetivos dos grupos que defendiam a eleição do republicando e a saída dos britânicos do bloco europeu, especificamente. A não-realidade se sobrepôs aos elementos reais que compunham o dia a dia dos envolvidos nesses processos.

Obviamente que esses são apenas casos extremos, usados como exemplo justamente pelo poder que a inserção de falsas notícias pode ter no curso da história global, mas a pós-verdade não nasceu há dois anos nem contamina apenas grandes eventos. No Brasil, especialmente, ela vem sendo regada e adubada diariamente com dois dos piores insumos disponíveis no mercado: o ódio e a intolerância. As redes sociais, por certo, são o terreno fértil para que um broto minúsculo se transforme em uma grande rama de raiva e agressividade, espalhando suas raízes por uma área infindável e irrestrita, a partir do arado de uma população cansada e massacrada por séculos de indiferença por parte de quem deveria garantir seu bem-estar.

O caso da execução da vereadora carioca Marielle Franco, do Psol, foi o exemplo mais recente no Brasil. Após ser morta enquanto voltava de um evento na capital fluminense, a parlamentar foi alvo de ataques através de fake news nas redes sociais. As falsas notícias afirmavam desde que Marielle seria ex-mulher de um renomado traficante até que estaria em dívida com o crime organizado do Rio de Janeiro. Em comum, a ideia de destruir a imagem, a memória e a reputação da militante esquerdista e defensora dos direitos humanos com informações mentirosas e caluniosas.

As fake news, entretanto, não são uma prerrogativa exclusiva dos grupos ligados à direita ou extrema-direita, como pode parecer em um primeiro momento. Do mesmo modo, os 'robôs' são usados para enaltecer personagens ou rebater acusações, nem sempre com argumentos reais. Na prática, se instalou uma guerra virtual na qual os soldados buscam abarcar a opinião pública a partir do que esta gostaria que fosse verdade. Eu explico: a maior parte das notícias falsas compartilhadas pelos usuários vem, quando não de contas falsas, de pessoas que, por convicções ideológicas, gostariam que essas informações fossem verdadeiras.

Os responsáveis por essa guerra, via de regra, perceberam essa tendência e atuam em interminável blitzkrieg em busca de soldados desavisados para essa intifada. E assim seguimos, no limiar já transposto que trouxe essas cruzadas para o plano real, tendo em vista que não são poucos os relatos de hostilidades e agressões em espaços públicos, mesmo quando o encontro de grupos ideologicamente contrários ocorre ao acaso. O espaço que ainda nos separa da barbárie - se é que ainda há algum - pode ser contabilizado em poucos toques de 'enter'.

Mas e qual será, então, o papel do jornalista diante dessa realidade aparentemente imutável, em que o bombardear de falsas informações se sobrepõe e engole os fatos? Por qual brecha acharemos o caminho para manter o bom processo jornalístico, no afã da instantaneidade, outra característica tão peculiar dos nossos tempos? A resposta é a mesma de sempre: ética no cumprimento da profissão, o único caminho possível para sair do mar de lama que nos inunda diariamente a partir da pressão de empresas, governos, grupos e grupelhos sedentos por ter apenas a sua versão dos fatos publicada.

Em tempos onde os jornalistas são agredidos por estarem realizando o seu trabalho, nós não podemos nos dar ao luxo de calar. Nos dias em que o simples fato de retificar uma informação errônea nos coloca como detentores de rótulos ideológicos, como se os fatos estivessem ao alcance dos nossos interesses, não nos resta alternativa senão combater. Cada vez mais, não podemos deixar de lutar para que a informação seja verdadeira, clara e objetiva, sem melindres ou meandros, doa a quem doer.

Por maior que seja o sucateamento da profissão, não pode o jornalista se abster de sua missão de dar voz a todos os envolvidos no processo histórico e buscar a verdade. Muitos dirão que a história é contada pelos vencedores. O jornalista, por sua vez, tem a tarefa imprescindível de garantir que se publique a versão de todos. O futuro dirá quem teve razão.

Ananda Müller é jornalista.

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