O pão nosso de cada dia

Por Mario de Almeida* São Paulo, anos 40, a coisa funcionava assim: eu ouvia a campainha, ia até o portão, voltava e dizia para …

Por Mario de Almeida*
São Paulo, anos 40, a coisa funcionava assim: eu ouvia a campainha, ia até o portão, voltava e dizia para a Chica, minha mãe preta e empregada perpétua em nossa casa - salta um prato de comida! Nesse bairro de classe média/média, nunca tive notícia que em alguma casa se dissesse "não".
Nessa São Paulo dos anos 40 a notícia de miséria vinha de longe, nos "Retirantes", de Portinari, ou nas "Vidas Secas", de Graciliano Ramos. Miséria mesmo era notícia de jornal. A gente conhecia e convivia com a pobreza, mas uma pobreza digna, sem fome ou privações vitais.
A São Paulo daqueles tempos era igual ao Rio, este um lindo postal vendendo o Brasil no exterior, um Brasil tropical que Carmen Miranda equilibrava na cabeça cheia de bananas e outras frutas da nossa fartura.
E os morros cariocas? "Lata d?água na cabeça", os morros eram música, escolas de samba e - vá lá - escolas de malandragem. Foi de um desses morros que, anos 50, desceu o "Orfeu da Conceição" de Vinicius, na sua primeira parceria com Tom Jobim.
Esse povo que adora transar, adoração saudável, devotou-se demais ao bíblico "crescei e multiplicai-vos", o que, em excesso, deixa de ser conselho para se transformar em praga. Nessa nossa explosão populacional e na migração para os grandes centros urbanos, a miséria tomou conta dos morros, das cidades? (o resto nós sabemos, vivemos e sofremos).
Em 1957, na peça "Pedro Mico", o escritor Antonio Callado já advertia: ou se distribui melhor a renda desse país ou o morro desce e pega pra capar. Tempos depois, sobre o assunto, o então ministro da Fazenda, Delfim, que nunca me pareceu bom em aritmética, pontificava que era preciso esperar o bolo crescer para depois dividir. Resultado: esse "bolo do milagre brasileiro", do qual só comeu quem já comia, deixou uma "faturinha", que, apenas na dívida externa, ultrapassava 100 bilhões de dólares. Eta bolinho indigesto!
A miséria está nas ruas, com ponte e viaduto servindo de telhado, as cidades amontoando mendigos, urina, fezes, gerando assaltantes, seqüestradores e marginais de todos os tipos. Há nas ruas uma população infantil vendendo gomas de mascar ou cheirando cola, crianças que no futuro jamais poderão repetir Casimiro de Abreu: "Oh! que saudades que tenho/da aurora da minha vida,/Da minha infância querida?"
As novas gerações estão crescendo junto com a violência, o medo, a insegurança e, talvez, o que é pior, achando que isso é muito natural.
Foi inaugurada, agora, em São Paulo, uma grande feira reunindo instituições envolvidas no programa Fome Zero. Mais um passo positivo para ampliar a consciência que a miséria é um desafio acima de partidos e de ideologias. Não há como fugir da evidência que, no caso, é compulsória: Estado e Sociedade têm que ser parceiros.
O escritor gaúcho Álvaro Moreyra e a mulher, Eugênia, agitadores culturais da primeira metade do século XX, na casa deles, em Copacabana, antes de almoçarem numa grande mesa no quintal, tocavam um sino. Era um convite aos menos favorecidos que sentavam e comiam.
Vamos todos ajudar a tocar o sino?
* Mario de Almeida é jornalista, publicitário, dramaturgo, autor de "Antonio?s, caleidoscópio de um bar" (Ed. Record), "História do Comércio do Brasil - Iluminando a memória" (Confederação Nacional do Comércio) e co-autor, com Rafael Guimaraens, de "Trem de Volta - Teatro de Equipe" (Libretos).
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