O papel dos jornais

Por Dora Kramer Há vinte anos, um pouco mais talvez, Alberto Dines assinava uma coluna todos os domingos onde discutia, pioneiro e algo solitário, …

Por Dora Kramer
Há vinte anos, um pouco mais talvez, Alberto Dines assinava uma coluna todos os domingos onde discutia, pioneiro e algo solitário, o papel dos jornais, sua influência, seus erros e acertos. Hoje, também quase só, Dines leva em frente o debate num programa de televisão e pela internet. Não raro, torna-se incômodo e impertinente.
Pudera: instrumentos de poder junto ao poder, elevados à condição de porta-vozes da sociedade, os veículos de comunicação permanecem à margem do processo de readaptação das instituições brasileiras à democracia e na correção das injustiças e hábitos nefastos nos diversos setores. Estão fora dessa discussão, a não ser como juízes, nunca como personagens.
Até mesmo pelas imperfeições que impedem o Estado de funcionar a serviço da população foi que a imprensa brasileira terminou assumindo tarefas que, em tese, não seriam dela: de delegacia de polícia a tribunal de pequenas e grandes causas - e, não raro, de inquisição, por equívoco de procedimentos -, jornais, revistas e televisões passaram a fazer de tudo. E também a serem demandados por tudo. Afinal, dada a rapidez e a amplitude da divulgação de informações, é na imprensa que os fatos reverberam e é nessa repercussão que o cidadão deposita sua esperança de solução.
Nem sempre dá certo, mas nos últimos anos, entre mortos e feridos - no que concerne a reputações -, deixaram de se salvar muitos vivaldinos. Natural, portanto, que nessa situação a imprensa adquirisse, como adquiriu, um poder e uma importância inéditos até então no Brasil. Conseqüentemente, seria também natural que o papel dos jornais, TVs e revistas fosse questionado pela sociedade, exposto à fiscalização. E aqui se fala de controle social, não de limitações.
Muito bem, mas, a pretexto da fidelidade a uma antiga e superada norma, segundo a qual "jornalista não é notícia", corre frouxa a imprensa. Um tanto sem critérios, meio no piloto automático naquilo que seria a expectativa de leitores, ouvintes e telespectadores, eufórica em seu papel de paladina das boas causas. Pois é neste item que residem vários problemas: vão desde a ineficácia das reparações quando cometidas injustiças até a ilusão da onipotência que faz, por exemplo, a emissora de televisão mais bem estruturada do continente deixar que um repórter assuma o papel de investigador de polícia. E faz isso - note-se que aqui se usa esse exemplo por causa da morte de Tim Lopes, mas a TV Globo não está sozinha na prática, adotada pela maioria dos veículos de comunicação - sem a menor preocupação com a proteção do profissional, descaso que aciona a polícia só no dia seguinte ao sumiço do jornalista.
Quem, afinal de contas, pensamos que somos? Todos nós, sem recorrer à atribuição exclusiva de culpas às chefias ou aos proprietários, mas distribuindo essas responsabilidades também conosco que produzimos o material noticioso do dia-a-dia. Para responder à pergunta acima - pensamos que somos seres acima do bem e do mal, do perigo, da violência e da injustiça - basta lembrar o quanto foi nos últimos anos valorizada a produção jornalística originada em procedimentos antes exclusivos de órgãos de informações e polícia: dossiês secretos, gravações misteriosas, filmagens às escondidas. Tudo isso confere premiações, jamais o questionamento da legalidade e legitimidade dos métodos.
Evidente que o jornalista fica, assim, estimulado a ir atrás do escândalo seja de que maneira for, travestindo-se de qualquer coisa num caso pronto e acabado onde os meios justificam os fins: a reportagem. E nisso estamos todos igualmente envolvidos. Sob os olhos complacentes dos escalões superiores passa de tudo: do estagiário que se apresenta à possível fonte com identificação falsa aos ávidos caçadores de dossiês, muitas vezes inocentes úteis nas mãos de bandidos cujos interesses foram contrariados, seja por gente honesta, seja pelo bando adversário. E já que perdemos Tim - que não pertencia à categoria dos deslumbrados, dos oportunistas nem dos inocentes, estava era cansado dessa guerra -, pelo menos que não percamos a oportunidade de olhar no espelho com um pingo do senso crítico que usamos para esquadrinhar a conduta do alheio.
* Artigo publicado em O Estado de S. Paulo, em 19.06.2002

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