O Pato de Monsieur Terrail

Por J. A. Moraes de Oliveira Ao estilo de um diplomata da velha estirpe, o homem alto se aproximou da mesa e informou que …

Por J. A. Moraes de Oliveira

Ao estilo de um diplomata da velha estirpe, o homem alto se aproximou da mesa e informou que o Canard a La Presse estava quase pronto e que seria servido em alguns minutos. Enquanto falava, seu olhar de cardeal renascentista percorreu a mesa, vistoriando copos, pratos e guarnições.


Quando se afastou, em menos de um minuto, as porções de foie gras e torradas foram renovadas e o Côte-de-Rhone voltou generoso aos copos, fazendo aumentar a expectativa para o grande momento da noite. O homem alto se chamava Claude Terrail e sua passagem pela mesa nos deu plena certeza de que havíamos chegado ao paraíso.


Um paraíso debruçado sobre o Rio Sena e também conhecido como "La Tour D"Argent".



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O caminho percorrido para chegar até ali começara muitos meses antes, quando alguém teve a idéia de festejar no melhor restaurante de Paris o aniversário do mais velho e abastado de nosso grupo. Contas feitas, combinou-se que a viagem deveria ser espartana. Voar apertado na classe econômica, hospedar-se em um pequeno hotel atrás de Les Invalides e riscar as Galleries Lafayette da programação das mulheres.


Ao fazer a reserva, pedimos uma mesa do lado do Quai de la Tournelle, para assegurar a vista para a catedral de Notre Dame. Durante a viagem, na hora da insípida comida do microondas do avião, um sádico lembrou que o pato que nos aguardava em Paris era um clássico da gastronomia, cuja receita fora descoberta pelo antigo dono do restaurante, em um venerável livro do século XIX.


Na chegada a Paris, vencido o atordoamento que nos assalta quando revisitamos uma bela cidade, todos se prepararam para a grande noite. As mulheres revisaram seus guarda-roupas, procurando pretextos para um passeio até as lojas da Rue de Rivoli, o que foi veementemente negado pela ala masculina, que optou por uma visita nos bistrôs da redondeza, para garantir o almoço do dia seguinte.


No restaurante, a mesa dos sonhos de qualquer mortal estava à nossa espera, debruçada sobre o Sena e com a catedral debaixo dos olhos. Como por encomenda aos céus, era uma noite clara e a lua fazia brilhar os tetos de Paris.


A elegância da mesa arrancou das mulheres os primeiros "oohs" da noite - ali estava o perfeito exemplo da arte e do requinte francês de bem servir. Com algum esforço, tentamos parecer à vontade, controlando as exclamações de entusiasmo das mulheres quanto à decoração, louças e cristais. O que foi impossível quando surgiu no salão uma famosa atriz italiana, precedida por um belo par de seios e escoltada por dois silenciosos senhores de óculos escuros.


Pedido feito, chega a hora da hesitação diante da carte de vins, que deveria conter uns 400 títulos, com descrições tão poéticas, que bem poderiam ter sido escritas por Paul Valéry.


Sob um certo silêncio religioso, o Canard a La Presse chegou à mesa. Era simplesmente majestoso e foi servido ritualmente, regado por um molho espesso e perfumado, feito de vinho do porto e cognac, alem do sumo do próprio pato, extraído em uma reluzente prensa de prata.


A partir daquele momento, os suspiros e comentários se alternavam com discretos olhares à silhueta iluminada da catedral, fazendo pose de quem está habituado com comidas maravilhosas e vistas hipnotizantes.


Durante nossa jornada ao paraíso, a discreta figura de Claude Terrail ao fundo saboreava em silêncio a felicidade dos comensais.


Provocado, nosso maitre fez desfilar a história dos famosos patos. Segundo a lenda, o pato de número um foi servido a Eduardo VII em 1890. Desde então, comensais como Alexandre Dumas, Winston Churchill, John F. Kennedy, Orson Welles e Elizabeth Taylor nos precederam naquele mesmo ritual gastronômico.


Mas - acrescentou o maitre - nós não encontraríamos nos registros do ano de 1942 o nome de Herr Adolf Hitler, pois o restaurante fechou as portas no dia da queda de Paris e somente as reabriu após a libertação, para receber Charles De Gaulle e o libertador de Paris, general Philippe Leclerc.


Quando perguntamos o número do canard servido ao General De Gaulle, o homem fez uma mesura:


"M. Le Président não gostava de patos."


Ao final do jantar, na hora de pagar a opulenta conta, presenteamos o homenageado da noite com o certificado do Canard a La Presse nº 886.119, que todos nós - secretamente - gostaríamos de ter guardado.


E até hoje, tantos anos depois, ainda lembro as doces reminiscências daquele jantar de reis, em uma luminosa noite de outono, sob as bênçãos de Nossa Senhora de Paris.


Ao mesmo tempo, é difícil evitar uma certa amargura, quando se sabe que M. Claude Terrail, assaltado pelos males da velhice e pela cegueira, não pode mais se deleitar com o espetáculo da felicidade de seus clientes nas noites do "Tour d"Argent".

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