O que a mídia deveria fazer

Por Leticia Nunes Assassinatos cruéis causam comoção popular. Quando as vítimas são jovens, bonitas e felizes, a revolta da população parece se multiplicar. Não …

Por Leticia Nunes
Assassinatos cruéis causam comoção popular. Quando as vítimas são jovens, bonitas e felizes, a revolta da população parece se multiplicar. Não foi diferente no caso do seqüestro e morte de Liana Friedenbach e Felipe Caffé, em Embu-Guaçu (Grande São Paulo), no início de novembro.
Quando crimes hediondos acontecem, as pessoas tendem a sentir-se próximas às vítimas. Liana poderia ser sua filha, sua irmã, sua sobrinha.

Felipe poderia ser seu amigo, seu primo, seu neto. E, de supetão, a população é tomada por um sentimento de ódio. Ódio coletivo e, neste caso, focado primordialmente em um único nome - ou melhor, apelido: Champinha.
O jovem casal de namorados, assassinado por Champinha e seus comparsas, virou notícia em todo o país. Abordados enquanto acampavam em um sítio abandonado, Felipe morreu com um tiro na nuca; Liana passou dias em poder dos bandidos, foi estuprada e morta a facadas.
Champinha - acusado pela polícia de ser o mentor dos crimes - tem apenas 16 anos, mesma idade que tinha Liana. Seu rosto não pode ser divulgado pela imprensa e de seu nome só se conhecem as iniciais: R.A.A.C.. O caso, além de causar revolta, também serviu de gancho para reacender um importante e polêmico debate: a redução da maioridade penal.
"Você não fica vivo"
Um assassino - ou qualquer outro criminoso - com menos de 18 anos, quando condenado, não recebe uma pena, mas uma "medida corretiva". Pelo Estatuto da Criança e do Adolescente, ele deve ficar por até três anos na Febem (Fundação Estadual do Bem-Estar do Menor). Após esse prazo, estará livre. Esta medida baseia-se no fato de que o adolescente não pode ser responsabilizado por seus atos, pois ainda se encontra em período de formação.
Depois de três anos de correção, Champinha será um homem livre. A possibilidade de que isso aconteça gerou mais revolta, mais espaço na mídia e mais manifestações de pessoas públicas opinando sobre o assunto. Citações pró e contra a redução da maioridade penal feitas por membros do governo, do judiciário e da igreja estão nos principais jornais do país. E a polêmica - como um bolo no forno - só faz crescer.
Para adicionar fermento à massa, foi divulgada uma pesquisa realizada em setembro pela Toledo & Associados a pedido da Ordem dos Advogados do Brasil (OAB). O levantamento revela que 89% da população brasileira defendem a redução da maioridade penal dos 18 para os 16 anos. Na mesma pesquisa, 52% dos entrevistados se disseram favoráveis à pena de morte para crimes hediondos.

O bolo transborda do tabuleiro.
Como uma reação em cadeia, a indignação em uma conversa informal entre pessoas na rua começa a ser expressada também nos veículos de comunicação. A apresentadora de TV Hebe Camargo, por exemplo, afirmou em seu programa (segunda, 17/11) que tem vontade de matar Champinha. "Viu Champinha? Eu vou fazer uma entrevista com você. Se me deixarem eu vou. Mas eu vou armada. Eu saio de lá e vou para a cadeia. Mas você não fica vivo", disse a apresentadora, em rede nacional.
"Não é a única opção"
A morte prematura de Liana e Felipe e os desdobramentos do caso levam também a questões sobre a mídia. Como a imprensa deve tratar um episódio tão cruel? O exercício do jornalismo pede isenção, mas é possível ser imparcial diante de fatos tão perturbadores? E qual o papel da mídia no debate sobre a maioridade penal?
Para Marcus Fuchs, diretor de planejamento da Agência de Notícias dos Direitos da Infância (ANDI), "o debate tem que ser o mais completo possível". E o papel da mídia é justamente analisar e discutir o assunto. Segundo Fuchs, a cobertura sobre este tema vem se qualificando ao longo dos anos e, se antes era superficial e até sensacionalista, hoje uma parte da imprensa mostra uma cobertura mais profunda e contextualizada. "A mídia tem que justamente dar aporte para que a sociedade debata melhor a questão e possa cobrá-la das autoridades", afirma.
Para Karyna Sposato, diretora-executiva do Instituto Latino Americano das Nações Unidas para Prevenção do Delito e Tratamento do Delinqüente (ILANUD), os meios de comunicação devem "estimular o debate construtivo e com conteúdo, de modo a desmistificar e desconstruir o senso comum". Na opinião de Karyna, a mídia costuma cobrir o tema de forma tendenciosa. "A supervalorização dos crimes graves e a idéia de uma personalidade doentia e perigosa [dos jovens criminosos] contribuem negativamente para a formação da opinião pública."
Além disso, há também um desequilíbrio na cobertura, como mostrou uma pesquisa realizada pelo ILANUD, em 1998. Intitulada "Crime e TV", a pesquisa acompanhou durante uma semana a programação de 27 telejornais exibidos pelas emissoras de canal aberto existentes no país. "Percebeu-se uma distorção gritante entre a ocorrência na realidade e a freqüência na divulgação pela mídia", diz Karyna. Por exemplo, enquanto os crimes de homicídio ocuparam 59% das notícias veiculadas, sua real incidência no mesmo período foi de 1,7%. "Esta distorção tem sido o padrão da mídia brasileira", constata a diretora-executiva do ILANUD.
Karyna enfatiza que a mídia reforça na população a crença de que os infratores menores de 18 anos não são punidos e não respondem por seus atos. Dessa fora, afirma, dois mitos são construídos: o da periculosidade dos adolescentes infratores e o da impunidade. "Ambos recrudescem o desconhecimento e a ignorância e estimulam a escolha de soluções imediatistas e repressivas."
E a mídia o faz porque crimes como os que vitimaram Liana e Felipe são potencialmente atrativos para a audiência. Karyna ressalta que a cobertura destes crimes revela a utilização excessiva e exagerada do assunto. "sem, contudo, aproveitar a ocasião para discutir a implementação das políticas dirigidas à infância e juventude, a legislação e o papel dos poderes públicos".
Marcus Fuchs diz que enquanto o debate sobre a redução da maioridade é amplamente explorado pela mídia, esquece-se de discutir o sistema prisional no país e o próprio conteúdo do Estatuto da Criança e do Adolescente. "O Estatuto, em alguns pontos, é mais rígido do que o Código Penal." Fuchs ressalta a deficiência do sistema prisional brasileiro, e questiona: "Queremos mesmo colocar estes adolescentes neste sistema? Queremos que eles voltem mais raivosos para a sociedade?" Segundo ele, a sociedade deve refletir, sem emocionalismos, sobre a reabilitação dos criminosos adolescentes. É nisso que a mídia falha, quando prioriza apenas um dos pontos do debate. "Tem que ser estimulada a discussão de outras alternativas à redução da maioridade, já que ela não é, como parece, nossa única opção", diz.
* O artigo foi originalmente publicado no site www.observatoriodaimprensa.com.br

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