Os espantalhos de Faluja

Por Paulo José Cunha* No princípio o verbo mandava e desmandava. Depois veio a imagem e se transformou na maior responsável pelas voltas que …

Por Paulo José Cunha*
No princípio o verbo mandava e desmandava. Depois veio a imagem e se transformou na maior responsável pelas voltas que o mundo dá. No império do verbo (impresso ou radiofônico) os jornalistas mudavam a história com a força das palavras. Dois exemplos, aqui mesmo do nosso quintal. O primeiro data de 22 de fevereiro de 1945. O Correio da Manhã (e O Globo na edição do dia seguinte) publicam entrevista de Carlos Lacerda com José Américo de Almeida (paraibano, ex-ministro de Viação e Obras de Getúlio, senador e por duas vezes governador da Paraíba). José Américo, pressentindo que a ditadura Vargas estava madura pra cair, abriu o verbo e obrigou o caudilho a convocar eleições gerais.
"No momento em que se pretende transferir a responsabilidade da situação dominante no Brasil da força que apóia para a chancela do povo, é a própria ditadura expirante que nos dá a palavra. É preciso que alguém fale, e fale alto, e diga tudo, custe o que custar".
Derrubada a ditadura pelo poder da palavra, novamente ela se tornaria a força propulsora da história brasileira, desta vez, fazer retornar à cena política o ditador que havia se recolhido a São Borja, no interior do Rio Grande do Sul. Outro repórter, Samuel Wainer, em 3 de março de 1949, publica em O Jornal uma entrevista exclusiva com Vargas, obtida na Fazenda Santos Reis, em São Borja. Nela, um Vargas mais maduro e ladino matreiramente reconhece não ser um líder político, e sim um líder de massas. "Não sou um oportunista, mas um homem de oportunidades", acrescentaria noutro ponto, entre baforadas de charuto.
A entrevista termina com uma revelação feita por um certo João Goulart, "simpático fazendeiro e deputado estadual petebista (?), um dos homens que goza de maior confiança pessoal de Getúlio Vargas, com quem se avista diariamente e de quem recebe tarefas que só um amigo de indiscutível fidelidade poderia receber". Diante de um Wainer boquiaberto, Jango aponta os "vários e grossos volumes de cartas, telegramas e cartões acumulados sobre uma mesa". E conta ao repórter que, só no dia 31 de dezembro daquele ano, Vargas recebera 53 mil mensagens de todos os pontos do país, e gastara oito mil cruzeiros do próprio bolso para respondê-las. "Mais de uma vez ouvi o chefe dizer que não se sentia com coragem de desapontar e frustrar as esperanças de tantos brasileiros". Jango dera a senha para a volta gloriosa do ditador ao Palácio do Catete, desta vez pelo voto, de onde só sairia morto com um tiro no peito.
Melhor esconder
Poderia lembrar ainda a explosiva entrevista de Pedro Collor à Veja, que iniciou o processo de desabamento do governo Collor, para realçar ainda mais a força da palavra na mudança da história. Mas, aí, a imagem já começa a fazer seu serviço. Ninguém esquece a Esplanada toda de preto no dia em que Collor pediu que o povo manifestasse apoio se vestindo de verde-e-amarelo. Mais: o que seria de tudo aquilo sem a força das imagens dos caras-pintadas? E a imagem daquela mesa coberta de dólares que detonou a candidatura Roseana? E a imagem de Waldomiro cobrando propina ao bicheiro?
Foi a força das imagens que provocou o final da guerra do Vietnã, quando pais e mães dos "boys" começaram a assistir em suas próprias casas os filhos indo pelos ares nos ataques do vietcong. Clinton, em 93, foi obrigado a retirar suas tropas da Somália depois que a televisão norte-americana exibiu um massacre de soldados ianques. O simples relato - feito com palavras - talvez não provocasse o impacto causado pela exibição de algumas cenas.
A lição foi rapidamente aprendida. Desde o início da invasão do Iraque, as grandes redes de TV, em nome de certo patriotismo, aceitaram as recomendações de Washington e esconderam do público norte-americano qualquer imagem que pudesse comprometer o ânimo a favor da guerra, alimentado pelo candidato à reeleição G.W. Bush. Soldados norte-americanos mortos, por exemplo, nem pensar. Ana Paula Padrão, num debate em São Paulo, mostrou cenas de soldados norte-americanos de joelhos, em sinal de boa vontade diante de chefes religiosos muçulmanos no Iraque. Imagens que nunca foram ao ar nos Estados Unidos (no máximo, as grandes redes concordaram em distribuir ao resto do mundo). O pretexto para a autocensura foi evitar que um gesto de boa vontade fosse confundido com submissão, que poderia mobilizar a opinião pública contra a presença americana no Iraque.
Em 31 de março, as grandes redes deram mais uma demonstração da importância da imagem. Atendendo a pedido do secretário de imprensa da Casa branca, impediram a veiculação nos Estados Unidos das cenas dos corpos dos civis americanos embebidos em gasolina, queimados junto com os carros, surrados pela multidão e arrastados pelas ruas de Faluja, a cidade a 50 quilômetros de Bagdá, uma das sedes da resistência iraquiana.
Os donos do poder na América aprenderam em meio século, desde o tempo em que a TV mostrava seus "boys" se espatifando no Vietnã, que é melhor esconder algumas imagens, mesmo que as palavras correspondentes sejam liberadas. Mônica Lewinsky fez um grande estrago com suas palavras, e até obrigou um constrangido Bill Clinton a assumir mundialmente as libidinagens "sem penetração" que praticou com ela. Nem por isso o rumo das coisas se alterou. Clinton concluiu serenamente seu mandato. Mas, se uma câmera oculta tivesse gravado as travessuras que os dois fizeram com aquele charuto em pleno Salão Oval da Casa Branca e as grandes redes divulgassem, será que a história do mundo seria a mesma?
* Paulo José Cunha é jornalista, pesquisador, professor da UnB, documentarista, autor de A noite das reformas, O salto sem trapézio, Vermelho, um pessoal garantido, Caprichoso: a Terra é azul e Grande Enciclopédia Internacional de Piauiês. Este artigo é parte do projeto acadêmico Telejornalismo em Close, coluna semanal de análise de mídia distribuída por e-mail.

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