Pedro Macedo: o dom da amizade

Por José Emanuel Gomes de Mattos "O amigo deve ser mestre na arte de adivinhar e de calar. Não deve ter vontade de ver …

Por José Emanuel Gomes de Mattos

"O amigo deve ser mestre na arte de adivinhar e de calar. Não deve ter vontade de ver tudo."


(Friedrich Nietzche, em "Assim Falava Zaratustra")


Outubro de 1997 marcou, talvez, o período mais insano da minha vida. Dois anos antes, durante discussão com policiais, fui detido e acusado de portar drogas. O episódio banal ganhou proporções por causa do jornal Zero Hora, que noticiou o fato. Na época, integrava a assessoria de Comunicação do Palácio Piratini. Diante da repercussão, fui colocado em licença médica. Deprimido, submergi no álcool.


E ali estava, dois anos e muitos tragos depois, ocioso, curtindo uma ressaca braba, naquele final de outubro de 1997, quando tive a lucidez de ligar para o meu amigo Pedro Macedo.


Fiz o seguinte apelo:


- Não agüento mais. Me interna em uma clínica!


Naquele dia ele prontamente levou-me de carro até a Fazenda Renascer, em Novo Hamburgo, local indicado pela querida amiga, jornalista e terapeuta, Evânia Reichert.


Lá, fui submetido à entrevista seletiva. Havia muita demanda e poucas vagas. Aprovado, recebi a relação do material: calças, bermudas, meias, cuecas - tudo aos pares -, um calçado, um tênis, um chinelo, escova e pasta dental, toalha de banho e rosto, sabonete e sabão em pó. Nada mais.


No dia seguinte, Pedro conduziu-me até a administração da Renascer, assinou o termo responsabilizando-se por mim e pelo pagamento mensal da estadia. A partir desse episódio, minha vida mudou.


Na triagem, passei pelo processo de adaptação que durou 30 dias. Ao todo, convivi em três das fazendas da Renascer, situadas em Novo Hamburgo, Lomba Grande e Estância Velha.


A maioria era mais jovem, oriundos de diversas cidades e estados, forçados ao internamento sob ameaça de serem rejeitados por seus familiares. O tratamento consistia em oração, estudo e trabalho, a fim de manter as mentes ocupadas.


Aos fins-de-semana, um ônibus nos transportava até a sede maior, em Estância Velha, para o encontro com as famílias. Era emocionante ver os abraços e beijos entre pais, mulheres e filhos. Gente forjada no álcool e drogas se desmanchava à vista daqueles que amavam. Era de cortar o coração quando um interno passava o dia inteiro isolado, olhos postos na porteira, à espera de alguém que não viria.


Na primeira quinzena, Pedro Macedo veio visitar-me e trouxe a minha mãe, dona Elony. Hoje tento adivinhar os sentimentos dela ao ver o filho na fazenda para dependentes. Ela que, dezenas de anos atrás, durante muito tempo fizera trajeto semelhante para ver os três filhos internados num colégio, em Gravataí.


Tragicamente, justo ali onde busquei tratamento à dependência, sofri a dor da discriminação. Ocorre que os viciados em drogas - alguns ex-apenados - não aceitavam que eu tivesse me internado voluntariamente. Para eles, era como cumprir pena sem ter cometido delito. Resultado: houve ameaças sutis, outras nem tanto, até que, sentindo-me pressionado, antecipei a saída depois de discutir com um monitor seqüelado em plena noite do ano novo de 1998. Sábia decisão. Estava jurado de morte, soube depois.


***


O Paulo Sant"Ana costuma dizer que quando escrevo, cito os outros como pretexto para contar minhas histórias. Relevo essa observação porque ele é narcisista e geminiano como eu. E enquanto ele exerce sua arte diariamente, só escrevo motivado por uma boa razão.


Como agora, ao narrar fatos sobre o meu amigo Pedro Macedo.


Como sua contratação para o setor de esportes de Zero Hora, em 1978. Na época, abriu-se uma vaga de redator e lembrei-me daquele sujeito bem humorado que, em 1974, quando eu editava o esporte do Hoje, vespertino da RBS (circulou entre outubro/74 a junho/75), havia substituído o irmão, Paulo Macedo, durante 30 dias. Indiquei seu nome ao José Antônio Ribeiro, editor do setor em 78, que concordou. Tive o prazer de ligar-lhe fazendo o convite.


Em 1985, troquei a função de editor de esportes de ZH pelo desafio de coordenar e treinar a equipe que lançou o Diário Catarinense. Entre outros, levei o Pedro Macedo junto. Ficamos menos de um ano em Florianópolis, apenas o suficiente para produzir 50 pilotos (!) e as cem primeiras edições do DC.


Pedro Macedo retornou para o Estado e foi ser assessor de imprensa na Fiergs. Eu vim trabalhar em minha primeira campanha eleitoral, que elegeu Pedro Simon ao governo do Estado, em 1986.


Voltamos a atuar juntos novamente em 1995, depois que Antônio Britto assumiu o Palácio Piratini, após árdua campanha eleitoral. Na ocasião, indiquei Pedro Macedo para coordenar a imprensa da CRT. Depois ele acabou na Cultura FM, mas aí já é outra história.


Cito esses fatos em que estivemos vinculados profissionalmente para justificar o respeito que tenho pelo Pedro Macedo, por ser daquela rara estirpe de jornalistas que qualifica o cargo que ocupa.


***


Volto ao tema da amizade, razão desse texto, para ressaltar a importância que Pedro Macedo teve em minha atribulada luta pela recuperação da dignidade pessoal.


Recém saído da Fazenda Renascer, sem ter completado o tratamento, tentei enfrentar o mundo de cara limpa. Consciente agora de que o alcoolismo é uma doença lenta, progressiva e fatal; que leva a três instituições: hospital, presídio ou cemitério.


Tentei completar os "Doze Passos para os Alcoólicos Anônimos", freqüentando as salas dos A.A., em igrejas ou centros comunitários. O remédio entra pelo ouvido, é o que se diz. Ouvi depoimentos inesquecíveis:


"É seguro um barco ancorado no cais. Mas barcos foram feitos para navegar", recitou certa manhã de domingo um velho senhor, deixando-me sem fôlego.


Desgraçadamente, a recaída é dez vezes pior. E aconteceu muitas vezes. Não descerei às minúcias. De tudo o que interessa relatar, apenas reportarei dois episódios de triste recordação, porém emblemáticos. Neles, fui socorrido - e talvez só tenha sobrevivido - graças ao dom da amizade de Pedro Macedo.


***


Em março de 2000 fui indicado para o recém-lançado Jornal do Dia, em Criciúma. De cara pude notar o ambiente pesado, a equipe constrangida e pouco receptiva à substituição do ex-editor que, transferido para a rádio do grupo, fazia jogo duplo entre os dois veículos.


Agastei-me. Sozinho, saia do jornal e me enfiava em um posto 24 horas onde bebia até a madrugada. Logo soube que um semanário local, Tribuna Criciumense, tinha planos de se transformar em diário. Em um mês estava no concorrente como diretor de Jornalismo. Lancei o diário, mas em poucos dias, frente ao amadorismo do projeto, me demiti. Em 40 dias havia trabalhado nos dos jornais concorrentes e virado a pacata cidade de cabeça pra baixo.


Uma semana depois, sem nada para fazer, senão encher a cara em biroscas pouco recomendáveis, liguei pro Pedro e pedi:


- Vem me buscar.


- Onde tu tá?


- Em Criciúma.


A distância entre Porto Alegre e Criciúma é de 300 quilômetros. Pergunto a quem estiver me lendo agora:


- Você iria?


O Pedro foi?


Isso aconteceu em abril de 2000.


***


Em 23 de dezembro de 2000, fui convidado a me retirar de um hotel em Capão da Canoa, após dois dias de comportamento incompatível com o "estabelecimento familiar". Ao buscar dinheiro no banco 24 horas para pagar a conta constatei que  o limite do cartão de crédito estava excedido. Resumo: caminhava de bermuda, chinelo de dedos e camiseta pelo sol abrasador na beira da praia, sem dinheiro, sabendo que o banco só abriria três dias depois. Bateu o desespero. Telefone público, ligação a cobrar:


- Pedro, vem me buscar.


- Onde tu tá?


- Em Capão. Fui despejado do hotel, minhas coisas ficaram dentro e tô sem dinheiro pra pagar.


Exatamente naquela data, Pedro Macedo e Xis, apelido da ex-quase-futura mulher, festejavam 25 anos de casados. Era sábado, antevéspera do feriadão de Natal, e o Pedro havia tido um problema cardíaco recente.


Pergunto:


- Se você fosse o Pedro, teria ido?


Pergunto também:


- Se você fosse a Xis, mulher dele, teria permitido?


O Pedro foi?


E a Xis, aquele anjo que Deus botou no mundo, permitiu?


Qualquer ser humano normal que tivesse passado por tal situação vivenciada pelo Pedro Macedo - e as anteriormente narradas - teria todas as razões para chutar o balde. Afinal, em pleno sábado de folga, no dia em que festejava 25 anos de casado, antevéspera de Natal, tirar o carro da garagem em Porto Alegre, ir até Capão, pegar um alcoólatra, pagar sua conta no hotel, e retornar à capital, percorrendo mais de 300 km sob o sol escaldante, é demais.


Tal como seu xará, D. Pedro I, daria um brado libertador:


- Essa foi a última vez! Basta!!!


O Pedro não disse nada?


E eu, mais quieto que guri cagado.


***


As águas rolaram e o tempo passou?


Minha mãe, dona Elony faleceu aos 69 anos, fulminada quando caminhava na rua, em abril de 1999.


Ela que sofreu tanto com a notícia maliciosa publicada no jornal, não teve a ventura de ver a honra de seu filho reparada na Justiça, que me inocentou da acusação por porte de drogas.


Nem viveu o suficiente para saber que Zero Hora indenizou-me por danos morais, em março de 2006, depois de protelar inutilmente em todas as instâncias durante quase dez anos.


E, principalmente, dona Elony não teve o prazer de ver seu filho olhar-se no espelho, numa certa manhã de novembro de 2005, depois de outra ressaca das brabas. Foi um daqueles episódios que só posso justificar pela fé que tenho em Deus e, creio, nunca me abandonou.


Ao ver refletido aquele homem velho, de olheiras profundas, sem perspectiva alguma, apenas cansado e interrogativo, um arrepio percorreu-me a espinha. Naquele momento não foi necessária nenhuma literatura dos A.A., nem recitar os "Doze Passos", nem nada. Bastou responder àquele sujeito que esperava, no outro lado do espelho, a resposta ao questionamento de Drummond:


- E agora, José?


Ela veio tão fulminante que me surpreendeu:


- Quer saber? Enchi o saco de beber.


A partir desse dia perdi completamente a compulsão pelo álcool.


***


Essas histórias podem não ter a menor importância. Mas como as estatísticas  apontam que jornalistas e publicitários estão entre os maiores consumidores de álcool e drogas, se esse depoimento levar ao menos um leitor do Coletiva.net a refletir, já terá valido a pena.


O objetivo do artigo é de fato homenagear essa grande figura humana, anjo transformado em gente, chamado Pedro Macedo, que foi modesto demais em seu perfil. Os comentários anexos, porém, já começam a fazer-lhe justo resgate.


Escrevi com franqueza - e até alguma crueza, admito - motivado pelo que advertiu-me certa vez, há muitos anos, e está anotado em um velho bloco, o guru dos repórteres de Zero Hora, Carlos Wagner:


- A tua biografia, ou tu vais escrevê-la ou os outros a escreverão. Se fores tu, serão os fatos; se forem outros, será a versão.


Pra finalizar, uma vez o Pedro disse-me algo que jamais esquecerei:


- Tu me dás mais trabalho que os meus filhos.


Pedro é orgulhoso pai do Vinícius, 21 anos, e do Bruno, 19.


Meu pai morreu de derrame cerebral, aos 29 anos. Eu tinha apenas seis.


Alguém lá em cima gosta de mim. Pedro Macedo é o pai que não tive.

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