Quarta-feira de cinzas

Por Márcia Fernanda Peçanha Martins* Às vezes, no silêncio da noite, eu fico imaginando cenas, eu fico ali sonhando acordada, juntando o antes, o …

Por Márcia Fernanda Peçanha Martins*
Às vezes, no silêncio da noite, eu fico imaginando cenas, eu fico ali sonhando acordada, juntando o antes, o agora e o depois. Foi assim no feriado de carnaval. Vivendo uma solidão gostosa. Daquelas que de uma hora para outra parece que todas as pessoas no mundo nos abandonaram e a gente percebe que está sozinho. Para driblar a solidão e me sentir um pouco carnavalesca, resolvi revirar os armários e rever as fantasias que já usei, remexer as gavetas onde guardei colares de havaianas, reorganizar a vida e, com a bandeira branca, pedir paz. Faz sentido. Não dizem que no Brasil o ano só começa depois do carnaval? Melhor então deixar tudo engatilhado.
No intervalo dos plantões, dediquei-me a essa tarefa corajosa de revirar a vida do avesso. O meu grito de carnaval começou quando optei em fazer uma análise da minha volta ao jornalismo diário. Alguns dirão, com toda a propriedade, que é muita petulância minha. Mas, segui nesse caminho. O carnaval é meu. E quem joga os confetes sou eu. Compreendi que nunca é tarde para se retornar ao dia a dia de uma redação. Exige desprendimento, humildade, serenidade e, principalmente, a velha lição de que não se sabe nada e perguntar é sempre essencial.
Entre altos e baixos, alguns comprimidos extras de Lexotan para aliviar o tranco, pautas que nem sempre se concretizam, dificuldades para se refazer a lista de fontes, o saldo pode ser considerado positivo. Depois de uma ausência do maravilhoso mundo de uma redação, por opção pessoal para trabalhar em assessoria, redescobrir que se consegue recomeçar é muito bom. É como cantar velhas marchas de carnaval: "Abre alas, que eu quero passar, eu sou jornalista, não posso negar".
No segundo dia do feriadão, quando as escolas do Rio de Janeiro desfilavam pela Sapucaí, deixei que passasse pela avenida de minha vida, que já tá mais para quilometragem avançada do que 1.0, a escola da minha família. Todos fantasiados de ternura. Em todos os carnavais de minha vida. Minha mãe é mais incrível que uma famosa porta-bandeira de braços abertos a cuidar dos filhos. Meus irmãos parecem diretores de harmonia, ajudando-me a não sair da linha e não perder pontos na frente dos jurados. Nas arquibancadas do sambodrómo, meus sobrinhos, com o jeito aborrescente que lhes é peculiar, acenando para eu nunca desistir.
O terceiro dia me lembrou uma música que o Alceu Valença cantava e que começava assim: "Na primeira manhã que te perdi, acordei mais cansada que sozinha". Foi quando decidi entoar o samba enredo das perdas. Muito dolorido. Ninguém gosta de perder nada. Imagina amigos e parentes. Ou os dois juntos em uma só pessoa. Um grande amigo, um grande parente, uma singular pessoa, um super companheiro e camarada para todas as horas. Um ser especial, iluminado, que deixou alegria e afetos por onde passou. Desafinei muito nessa parte.
Na terça-feira gorda, fui induzida a reavaliar os últimos 10 anos de minha vida e concluir que uma fantasia que me cabe muito bem é a de mãe. Sem falsa modéstia. Essa fantasia eu não coloco nunca de volta no baú. Ela me veste todos os dias. Mas é renovada a cada ano, porque a minha filha vai crescendo e me ensinando coisas novas, gírias diferentes, tem me feito os carinhos mais confortantes nas horas em que mais preciso, tem caminhado junto comigo, lado a lado. Como uma colombina, chorei de saudade e manchei a maquiagem. Alguém já disse em algum lugar: Ninguém conhece o verdadeiro amor até ser mãe. Certamente, compartilho da teoria.
Assim, terminaram os meus quatro dias de cachaça e folia. Chegou a hora de tirar os confetes do corpo, afinar a voz para o samba enredo do carnaval 2006, tirar a máscara negra que escondeu meu rosto. E, no final, nem me senti muito sozinha ao repaginar minha vida, ao diagramar meu futuro, e ao colocar meu passado num banco de dados. Prá tudo se acabar na quarta-feira.
* Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista. Trabalhou no Jornal do Comércio, Zero Hora, na assessoria de comunicação da Prefeitura de Porto Alegre e agora está no Correio do Povo.
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