Requiem por um diploma

Por Zélia Leal Adghirni Como professora de jornalismo na Universidade de Brasília há mais de 15 anos e como jornalista que fui durante duas …

Por Zélia Leal Adghirni
Como professora de jornalismo na Universidade de Brasília há mais de 15 anos e como jornalista que fui durante duas décadas, no Brasil e no exterior, senti-me indignada com a decisão do Supremo Tribunal Federal (STF) de extinguir a obrigatoriedade do diploma para o exercício profissional do jornalismo. Considero o voto dos ministros do STF uma afronta aos jornalistas e uma ofensa à sociedade. Basta ouvir os argumentos dos magistrados para perceber o total desconhecimento desta área. Eles acreditam ainda que o jornalismo é "uma arte" (comparada a uma arte gastronômica, segundo o ministro Gilmar Mendes) e "uma vocação". Em tempos de jornalismo digital, quando as tecnologias de comunicação colocam novos e inquietantes desafios para os profissionais, oito ministros do STF recuaram dois séculos para decretar o fim de uma profissão historicamente construída, com seus valores éticos, sua ciência e suas técnicas. Nos séculos XVIII e XIX escritores renomados como José de Alencar e Machado de Assis publicavam artigos na imprensa. Mas não por isso se consideravam jornalistas. Foi preciso que surgisse João do Rio, o primeiro repórter brasileiro, para mostrar que a reportagem de rua era mais importante para a sociedade do que a crônica literária de autor.
Afirmar que a exigência do diploma é um entulho do regime militar é um falso argumento. A luta começou bem antes do golpe militar de 1964. Que a profissão tenha sido regulamentada em 1969 é uma mera coincidência. A primeira tentativa de regulamentação da profissão de jornalista foi um decreto do então presidente Jânio Quadros, em 1961. O decreto se referia a uma regulamentação explícita de 1938 (Getúlio Vargas) que determinava a criação de escolas de preparação ao jornalismo, destinadas à formação de profissionais de imprensa. A Tribuna da Imprensa, de Carlos Lacerda, foi o primeiro jornal a contestar a medida. Não faltaram juristas para refutar a decisão e o argumento usado para a inconstitucionalidade foi a falta de tramitação no Congresso. Um Congresso que agora, com raras vozes de exceção, calou-se diante do STF. A sociedade também não foi ouvida, não houve audiência pública. A decisão dos ministros, quase por unanimidade, foi autoritária e retrógrada.
O Brasil tinha uma das legislações mais justas em relação ao acesso profissional, firmada no ensino universitário e abalizada pelos órgãos da categoria. O recém-formado entrava no mercado com um preparo básico que seria aperfeiçoado nas rotinas produtivas do ofício, como os médicos e os advogados.
Todas as profissões se institucionalizaram através das práticas e do acúmulo de saber que proporcionam a pesquisa contínua e a permanente recriação de instrumentos de trabalho. Se as demais profissões exigem formação especializada, por que o jornalista nasceria pronto, com talento inato? Já dizia Jospeh Pulitzer, o "pai" do jornalismo moderno, que "a única posição que um homem pode triunfalmente atingir pelo simples fato de ter nascido, é a de idiota". Para qualquer outra, "some training is required". O argumento de que em outros países não há necessidade do diploma demonstra total ignorância do tema. Os meios de acesso ao profissionalismo são extremamente filtrados e obedecem a critérios muito mais complexos que os nossos. Na França, por exemplo, o interessado deve provar diante de uma comissão de especialistas que o jornalismo é sua principal fonte de renda.

Se, a partir de agora, o registro de jornalista no Ministério do Trabalho "perdeu o sentido", assim como todos os outros aspectos que regulamentavam a profissão, é preciso definir os critérios para a contratação de profissionais. As empresas dizem que será dada preferência a quem tiver passado por uma boa escola de jornalismo. Serão estabelecidos critérios para as 400 escolas de jornalismo do país para saber quais são as boas?

Outra falácia é confundir liberdade de expressão com liberdade de profissão. A figura do colaborador já existia na antiga legislação. São especialistas convidados pelas mídias, que publicam artigos e comentários nos espaços de Opinião, remunerados ou não. Assim, podemos ler artigos do ex-ministro Jarbas Passarinho, da socióloga Barbara Freitag, do médico Dráuzio Varela nas páginas mais nobres da imprensa, dentro dos gêneros opinativos (os acadêmicos trabalham com a tradição dos gêneros opinativos e gêneros informativos, conceitos elaborados pelo professor Jose Marques de Melo (Cátedra Unesco de Jornalismo) em sua extensa obra universitária.
A Fenaj nunca se opôs a estas colaborações muito bem vindas, mas o exercício profissional no cotidiano é o outro. Os especialistas colaboradores aceitariam ser "repórter por um dia"? É o repórter, quase sempre anônimo, que vai para a rua gastar a sola do sapato na Esplanada dos Ministérios, na Favela da Maré, na cobertura da entrevista coletiva à imprensa, na greve dos operários, nos acidentes de trânsito e assim por diante. O jornalista sabe que neste oficio há mais transpiração que inspiração. Só o jornalista, como mediador, pode organizar o caos, selecionar e divulgar tudo aquilo que quebra a superfície lisa do cotidiano para transformar acontecimentos em notícias.O resto é amadorismo.
Que o luto de hoje se transforme em luta, é o que desejo aos alunos de jornalismo a partir de agora. 

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