Sardas e Sonhos

Por J.A. Moraes de Oliveira A loura no aeroporto de Amsterdam lhe pareceu vagamente familiar, como todas as louras que encontramos em lugares longe …

Por J.A. Moraes de Oliveira

A loura no aeroporto de Amsterdam lhe pareceu vagamente familiar, como todas as louras que encontramos em lugares longe de casa. Chegaram juntos à fila da aduana e ele, instintivamente, cedeu-lhe o lugar.


Refreando o impulso de abordá-la, observou cuidadosamente a bela mulher que estava bem à sua frente. Porte sinuoso e esguio, pele clara e cabelos que emitiam uma pálida luz dourada. Tentou identificar o perfume que ela usava - Chanel ou Givenchy?


Ela fez um movimento de cabeça, procurando o passaporte na bolsa e os longos cabelos se dividiram, revelando ombros cor-de-manteiga, pintalgados por pequenas sardas.


Deixou-se levar pela fantasia, imaginando o pequeno par de seios e um colo cobertos por sardas miúdas. Ela era, sem tirar nem por, a valquíria que freqüentava seus devaneios, no tempo em que estudava alemão no Instituto Goethe de Porto Alegre.


Não dava para ver seus olhos, mas os imaginou de um azul profundo, cor-de-fiorde. Ou talvez, verde-escuros, como as florestas do Norte. Nada que importasse muito, tanto poderiam ser azuis ou verdes, ele ansiava por olhar dentro deles, na busca da musa de seus sonhos juvenis e que agora aparecia verdadeira e quase ao seu alcance.


***


A fila se movimentou e ele notou que o passaporte que a loura entregava ao oficial da imigração era da Nova Zelândia. Afinal, sua valquíria não era sueca nem dinamarquesa. Nem por isso deixou sua fantasia escapar e, num instante, a deusa nórdica se transformou em uma estudante em férias, à procura de emoções proibidas em Amsterdam.


Preparou a abordagem, procurando um pretexto. Sabia pouco sobre a Nova Zelândia, a não ser que lá não existia poluição e que seu rebanho de ovelhas era maior do que a população. Mas isso seria ridículo, não renderia nem dois minutos de conversação. Precisava de algo mais consistente, para acender o interesse da loura.


Enquanto isso, a fila para o táxi se movimentava e ele continuava sem saber o que dizer. "Vou improvisar" pensou, decidindo se apresentar como um gentil guia de turismo que a convidaria a conhecer os canais da cidade e os museus de arte.


Mas os táxis chegavam rápido e a loura dos mares do sul já estava na cabeça da fila. Um grupo atrapalhou-se com as bagagens e ele passou à frente, ficando logo atrás dela. E ouviu quando ela deu ao motorista o endereço de um luxuoso cinco-estrelas no centro da cidade.


Quando seu táxi chegou, ele deu o mesmo endereço. Sabia que isso lhe iria custar muito mais do que pagaria em seu hotelzinho na zona dos museus, de onde gostava de ir a pé até o Rijksmuseum.


Afinal de contas, um encontro romântico com uma misteriosa loura, valeria algumas dezenas de dólares a menos em seu orçamento de viagem. E Rembrandt bem que poderia esperar um ou dois dias.


***


Quando chegou ao hotel, soprou um assovio de assombro. O Hotel Amstel Amsterdam é um belo prédio neo-clássico do seculo XIX, debruçado sobre o rio. De dentro do táxi, observou um elegante casal desembarcar de uma grande Mercedes negra, seguido por um desfile de malas Louis Vuiton.


Suspirou fundo e atravessou o imponente lobby, com esperança de avistar a loura em um dos sofás espalhados no piso de mármore. Mas não havia nem sinal dela.


Deu o nome ao concierge, que tentou uma busca inútil por uma reserva que não existia. O homem parecia mortificado por não encontrar seu nome, mas polidamente comunicou que conseguira uma ótima suite, com ampla vista para o Amstel.


Era tarde demais para recuar. Assumiu ares de homem do mundo e seguiu o mensageiro por corredores silenciosos, cobertos por macios tapetes vermelhos.


Mal entrou em sua suite, largou a mala e abriu de par em par as grandes janelas francesas. O custo daquele panorama milionário daria para pagar uma temporada no seu pequeno Prinsenhof Hotel, que não oferecia uma vista como aquela mas era vizinho dos grandes mestres holandeses.


Um frio no estômago e uma ponta de arrependimento começou a crescer dentro dele. Guardou as roupas e saiu para explorar o hotel, sentindo a adrenalina nas veias, na ansiedade de encontrar a loura da Nova Zelândia.


Bateu pernas pelo lobby, percorreu a elegante galeria de lojas e acabou no   bar para um martini seco. Nem sinal dela. Já era tarde e decidiu jantar sozinho na brasserie do primeiro andar.


A placa dourada na porta informava que ele estava em um restaurante com duas estrelas no guia Michelin. Os preços de três-dígitos o assustaram ainda mais e ele tomou uma decisão - subir ao quarto, refazer as malas e fugir daquele hotel caríssimo.


Com uma desculpa qualquer ao simpático concierge, em 15 minutos poderia estar no táxi, a caminho de seu aconchegante hotelzinho sem estrelas.


Largou o cardápio e levantou-se para sair.


Na porta do restaurante, deu de cara com a loura e com os olhos com que havia sonhado - eram mesmo de um azul profundo, como os da valquíria de sua juventude.


Junto ao colo, coberto de sardas, ela abraçava um grande livro de arte.


O título era "As Obras-Primas de Rembrandt".

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