Saudades do Padre Brown

Por J. A. Moraes O professor Raphael cultivava um estranho passatempo, que o divertia enormente, mesmo quando estava deprimido ou de mau humor. Ele …

Por J. A. Moraes

O professor Raphael cultivava um estranho passatempo, que o divertia enormente, mesmo quando estava deprimido ou de mau humor. Ele tentava - e geralmente conseguia - antecipar o estado de espírito dos seus visitantes pelo som e ritmo de seus passos na escada de madeira que ligava os dois pisos da velha casa de campo. Inventara este passatempo ao recordar um conto de G.K. Chesterton, onde o Padre Brown desvendava um misterioso crime, simplesmente interpretando o significado dos passos dos personagens suspeitos que andavam de um lado para outro no longo corredor de um hotelzinho no interior da Inglaterra.


No entanto, havia uma enorme diferença entre eles - o Padre Brown era um famoso detetive amador, além de místico e filósofo. E o professor Raphael era apenas um modesto professor de Teologia, agora aposentado em uma cidadezinha  nas montanhas do sul. E que gostava de receber visitas e saber das novidades da província,  tentando entender o que se passava na alma de seus interlocutores.


Ele reconhecia de longe as pessoas que chegavam pelo jardim, percorrendo o caminho de pedras até a porta da cozinha. Lá eram saudadas pelo sotaque carregado de frau Helga, atarefada com o almoço e com a roupa por lavar. Eles subiam a escada de madeira e prosseguiam pelo longo corredor de tábuas até a sala de visitas. Batiam cerimoniosamente na porta e entravam no que ele denominava de escritório, mas que era também seu quarto de dormir e onde eram guardados todos os seus livros. No centro, uma mesa de trabalho abarrotada de papéis, duas cadeiras de visitantes e um sofá que mostrava claramente a idade.


As estantes exibiam uma caótica organização que só o professor Raphael conseguia entender. Havia de tudo, de Hegel a Edgar Wallace, livros acumulados durante sua vida de estudante e de professor de Teologia.


A maior parte, comprada na Feira do Livro e em sebos da Capital. Por diversas vezes , frau Helga havia tentado arrumar a sala e tirar o pó dos livros e dos papéis amontoados na mesa. Mas o professor Raphael não gostava de arrumações e reclamava por não conseguir achar nada depois de cada faxina. Finalmente, haviam chegado a um acordo - frau Helga limparia as estantes, mas sem mudar


os livros do lugar. E sua mesa seria poupada - ali, entre papéis e recortes de jornais, ficava sua relíquia maior, uma veneranda Underwood, onde ele datilografava seus artigos semanais para o jornal da cidade.  Ela tinha um pequeno problema  - as teclas "Y" e "E" estavam quebradas. Cada vez que terminava um artigo, era preciso uma cuidadosa correção no texto, pois se o "Y" não fazia falta, a ausência do "E" tornava frases inteiras ininteligíveis.


Naquela manhã, ele já havia revisado seu artigo da semana e aguardava o primeiro visitante do dia, que agora atravessava o jardim e entrava na casa. O professor Raphael o ouviu subir a escada e caminhar pelo corredor. Os passos eram lentos e pesados, como se o visitante carregasse um grande peso. Aquilo o intrigou, pois se tratava do novo pároco da igreja da cidade, que habitualmente caminhava com passos leves e ligeiros. Ele havia substituído seu velho amigo Frei Lucas, falecido no ano anterior. O jovem pároco entrou, saudou-o e sentou-se na cadeira de visitas, sem mostrar nenhum sinal de anormalidade em seus olhos claros e em seu rosto quase juvenil. A conversa fluiu como sempre, começando pelos fatos cotidianos da cidade, como a necessidade de pintura do teto da igreja, a recente chuva de granizo e outras miudezas que costumam ocupar o tempo das pessoas nas pequenas cidades. Mas a conversação logo desviou para o assunto do momento - a trágica morte da mulher do juiz de paz, afogada na banheira de casa, durante uma viagem do marido pelo interior do município. O professor prestou pouca atenção  nos planos para a missa de sétimo dia, que seria celebrada na manhã seguinte, mas se interessou pela informação de que o juiz de paz estava inacessível, enclausurado em seu quarto, desde a morte da esposa.


O pároco devolveu-lhe as "Confissões" de Santo Agostinho, encadernado em couro, o que levou a conversa enveredar pelo tema recorrente desde os tempos do Frei Lucas - os escritos agostinianos e seu significado nos tempos atuais. Enquanto falavam, o professor procurava entender o que poderia estar perturbando o jovem visitante, que agora olhava constantemente o relógio de parede. Já havia notado o livro úmido de suor das mãos do pároco, pressentindo que alguma coisa estava errada, mas não sabia o que poderia ser.


O professor Raphael sentou-se na borda da cadeira, olhou diretamente nos olhos claros de seu visitante e perguntou à queima-roupa: "O que o está perturbando, meu jovem amigo? Talvez eu possa ajudá-lo de alguma forma".


O pároco hesitou, engoliu em seco e falou, quase sussurando: "Não sei o que fazer, meu bispo está em Roma e só Deus me pode ajudar". Calou-se e olhou para a janela, para o retângulo azul da primavera lá fora, como se esperasse uma resposta dos céus.


O professor insistiu: "Me parece que estás carregando um enorme peso, como se fosse um pecado mortal. Posso saber o que aconteceu?".


O visitante se sobressaltou: "Como o senhor advinhou? Eu não posso revelar nada, é uma coisa terrível, que ouvi em segredo no confissionário,  é um peso muito grande para carregar sozinho".


E ficou novamente em silêncio, torcendo as mãos em aflição. O professor foi até a estante e procurou "A Sabedoria do Padre Brown" entre os livros de Chesterton. Abriu o livro ao acaso e leu algumas linhas:


"Somos capazes de  acreditar no impossível, mas não no possível, pois nunca devemos temer o sobrenatural, que não compreendemos, mas sim o natural, que contradiz o que compreendemos."


E fechando o livro, acrescentou: "É o que chamam de paradoxo, não é?  Nem sempre podemos entender o que se passa na alma humana, mas Deus nunca está ausente".


O visitante permaneceu calado por um longo tempo, como se estivesse digerindo o paradoxo do Padre Brown ou tentando decidir o que fazer com o peso que carregava.


FInalmente, ergueu-se com um suspiro e  um sorriso tímido:


"Obrigado, vou rezar e pedir a Deus que me ilumine."


O professor Raphael ouviu o visitante se afastar, andando  pelo corredor e pela escada de madeira. Era impressão sua, ou seus passos pareciam agora mais leves do que antes?


Foi até a janela e viu o pároco percorrer o caminho de pedras. Ele parou por um minuto, olhou para o céu e sacudiu os ombros, como que se livrando de um grande peso.


Mas o professor não teve tempo de pensar no assunto, pois logo vislumbrou um novo visitante no caminho do jardim. Era o juiz de paz, que mostrava um rosto carregado, voltado para o chão. Ouviu a saudação de frau Helga na cozinha, mas não a resposta do recém-chegado.


Então ouviu os passos na escada e ao longo do corredor.


Eram passos arrastados e pesados, de alguém que carregava o peso de uma enorme culpa.


A porta se abriu e o juiz de paz entrou na sala.

Comentários