Se todos fossem iguais a você

Por Emanuel Gomes de Mattos* O imenso jornalista, em todos os sentidos, Nico Noronha, depois de ter lido os comoventes artigos do Antônio Manoel …

Por Emanuel Gomes de Mattos*
O imenso jornalista, em todos os sentidos, Nico Noronha, depois de ter lido os comoventes artigos do Antônio Manoel de Oliveira e do Eliziário Goulart Rocha no Coletiva.net, em homenagem ao Evaldo Gonçalves, concluiu pela falta de algo que simboliza o que o Evaldo verdadeiramente significou para quem conviveu mais amiúde com ele. Concordo. Na verdade, a dor da perda foi tanta que é difícil encontrar palavras novas que reproduzam com fidelidade o tamanho do sentimento dessa perda.
Mas ao escutar esse sensível texto, declamado pelo saudoso Vinícius de Moraes, intitulado "O Haver", que consta no CD "Vinícius 90 anos" - imperdível - imaginei o Evaldo sendo recepcionado pelo poeta quando ambos se encontraram num destes providenciais botequins de outra dimensão.
Afinal, se todos fossem iguais a eles, que maravilha viver.
O Haver
"Resta acima de tudo / Essa capacidade de ternura / Essa intimidade perfeita com o silêncio / Resta essa voz íntima pedindo perdão por tudo / Perdoai! Eles não têm culpa de ter nascido / Resta esse antigo respeito pela noite / Esse falar baixo / Essa mão que tateia antes de ter / Esse medo de ferir tocando / Essa forte mão de homem / Cheia de mansidão para com tudo que existe / Resta essa imobilidade / Essa economia de gestos / Essa inércia cada vez maior diante do infinito / Essa gagueira infantil de quem quer balbuciar o inexprimível / Essa irredutível recusa à poesia não vivida / Resta essa comunhão com os sons / Esse sentimento da matéria em repouso / Essa angústia da simultaneidade do tempo / Essa lenta decomposição poética em busca de uma só vida, uma só morte / Um só Vinícius / Resta esse coração queimando como um círio / Numa catedral em ruínas / Essa tristeza diante do cotidiano / Ou essa súbita alegria / Ao ouvir na madrugada passos que se perdem sem memória / Resta essa vontade de chorar diante da beleza / Essa cólera cega em face da injustiça e do mal-entendido / Essa imensa piedade de si mesmo / Essa imensa piedade de sua inútil poesia / E sua força inútil / Resta esse sentimento da infância subitamente desentranhado de pequenos absurdos / Essa tola capacidade de rir à toa / Esse ridículo desejo de ser útil / E essa coragem de comprometer-se sem necessidade / Resta essa distração, essa disponibilidade / Essa vagueza de quem sabe de que tudo já foi / Como será, como virá a ser / E ao mesmo tempo esse desejo de servir / Essa contemporaneidade com o amanhã dos que não têm ontem nem hoje / Resta essa faculdade incoercível de sonhar, de transfigurar a realidade / Dentro dessa incapacidade de aceitá-la tal como é / Essa visão ampla dos acontecimentos / E essa impressionante e desnecessária paciência / E essa memória anterior de mundos inexistentes / E esse heroísmo estático / E essa pequenina luz indecifrável / A que às vezes os poetas tomam de esperança / Resta essa obstinação em não fugir do labirinto / Na busca desesperada de alguma porta quem sabe inexistente / E essa coragem indizível diante do grande medo / E ao mesmo tempo esse terrível medo de renascer dentro da treva / Resta esse desejo de sentir-se igual a todos / De refletir-se olhares sem curiosidade e sem história / Resta essa pobreza intrínseca / Esse orgulho / Essa vaidade de não querer ser príncipe senão do seu reino / Resta essa fidelidade à mulher e ao seu tormento / Esse abandono sem remissão à sua voragem insaciável / Resta esse eterno morrer na cruz de seus braços / E esse eterno ressuscitar para ser recrucificado / Resta esse diálogo cotidiano com a morte / Esse fascínio pelo momento a vir / Quando emocionada ela virá me abrir a porta como uma velha amante / Sem saber que é a minha mais nova namorada."
(Vinícius de Moraes)
* Emanuel Gomes de Mattos é jornalista.
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