Sem perder a ternura

Por Márcia Fernanda Peçanha Martins* Houve uma vez um verão, em janeiro de 1979, quando uma turma que simplesmente se achava o máximo foi …

Por Márcia Fernanda Peçanha Martins*
Houve uma vez um verão, em janeiro de 1979, quando uma turma que simplesmente se achava o máximo foi classificada para o vestibular de Comunicação Social da PUCRS. O tempo era de abertura política, do presidente Luiz Inácio Lula da Silva comandando as primeiras greves por melhores salários pós-ditadura no ABC paulista, do Fernando Gabeira desfilando sua mínima tanga de crochê lilás nas praias do Rio de Janeiro. E uma turma de novatos entrando na faculdade com um objetivo que era a rebeldia maior da jovem esquerda daqueles dias: mudar o mundo, revolucionar, mas sem perder a ternura.
Ao receber um e-mail de uma colega daquela época, comentando um artigo meu publicado na Coletiva e pedindo contato, fiquei pensando: onde estão todos aqueles rapazes que iriam mudar o mundo - dizia mais tarde o mestre Cazuza. Passados 25 anos, o que será que aconteceu com cada um deles? Não faço idéia. Com poucos, ainda mantenho contato mais direto. No aniversário dos filhos, onde todos sabem que pouco se conversa em festas deste tipo. Acompanho de longe ou perto as atividades profissionais de outros, cujos nomes me marcaram. Sei da vida de um através do comentário de outro.
Mas a convivência esvaziou-se e junto com ela a promessa feita com muito champanhe, em copos de plástico, no dia da formatura, em 5 de janeiro de 1983, de que não iríamos nos dispersar, também não foi cumprida. A promessa foi feita minutos antes de entrarmos no Salão de Atos e tomarmos posse do canudo de formatura.
É normal. Ao terminar a faculdade, cada um busca uma nova opção. Às vezes, muda de Estado ou País, faz nova faculdade, concurso para o Banco do Brasil, resolve dedicar-se somente à família, e por aí, a turma foi se espalhando. Se perdendo. Se esvaindo. As vidas se embaralham e se perdem conforme as conveniências profissionais e familiares de cada um. Mas, ainda ouso pensar. O que será que perdemos nesse imenso período sem contato? Não sei, as aparências enganam, tanto aos que ainda odeiam ou aos que amam.
Talvez tenhamos perdido um pouco a capacidade de indignar-se com as injustiças do mundo e são tantas e mais hediondas a cada dia; de revoltar-se com as guerras que vivenciamos, agora com armas mais potentes; de brigar por melhores espaços no mundo profissional e porquê não melhores salários? Perdemos o olhar triste e a melancolia ao ver a pobreza proliferar nas sinaleiras e os meninos fazendo malabarismos para tentar ganhar a vida? Perdemos um jeito manso de acreditar que "tudo, tudo vai dar pé?" Perdemos uma mania de acreditar num amanhã melhor, com melhores condições de vida e igualdade para todos?
Creio que não. Impossível perder a noção da ternura em apenas 25 anos. A ternura e a capacidade de indignar-se estão presentes em gestos mínimos e quase imperceptíveis. Ninguém consegue embrutecer seus sentimentos tão rapidamente e mudar tão de repente. Ainda mantemos a ternura e a indignação. Podem estar repousando um pouco em algum terraço, olhando as estrelinhas lá no céu. E acreditamos que podemos mudar. Cada qual da sua maneira, no seu canto, no seu trabalho, na sua família e no seu habitat. Qual seria a graça se acordássemos todo dia com o amargo gosto na boca de que nada mais pode mudar e de que estamos acomodados.
Sei lá. Apenas lembro-me de que houve uma vez um verão. E quem conviveu com a turma daquele verão ainda pode muita coisa. Nosso poder é enorme e desconhecido de nós mesmos. E pode fazer coisas inimagináveis. Todo o dia, quando acordo, ao despedir-me com um beijo carinhoso no rosto de minha filha, ao sair para o trabalho, traço planos para tentar melhorar o mundo, fazê-lo mais justo, honesto, cidadão. Afinal, quero saber que tentei construir algo melhor para minha filha quando ela estiver crescida.
* Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela PUCRS. Trabalhou no Jornal do Comércio, Zero Hora e atualmente é assessora de comunicação sócia.
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