Sobre a necessidade de uma reforma

Por Eduardo Dutra Aydos Em solidariedade ativa, na condição profissional de cientista político, e invocando a liberdade de cátedra (investigação, ensino e publicação de …

Por Eduardo Dutra Aydos
Em solidariedade ativa, na condição profissional de cientista político, e invocando a liberdade de cátedra (investigação, ensino e publicação de idéias), dedico este texto aos jornalistas perseguidos, processados e condenados, pelo governo do Partido dos Trabalhadores no Estado do Rio Grande do Sul.
O caso do governo estadual contra a RBS (Marcelo Rech e José Barrionuevo) é paradigmático da lenta agonia do Estado Democrático de Direito, no profundo Sul da nossa República Federativa. Mais do que isso, por uma tradição histórica, que faz do Rio Grande um Estado que antecipa os fenômenos políticos, os quais, mais tardiamente, emergem e se cristalizam no cenário nacional, tais fatos impõem-se à reflexão e exigem posicionamento da sociedade brasileira como um todo - mais especificamente, dos seus segmentos e instituições diretamente envolvidos na preservação da liberdade e na consolidação da democracia.
Uma leitura atenta da sentença prolatada contra os jornalistas da Zero Hora e, minimamente competente de um conhecimento histórico e sociológico de nível médio, deveria arrepiar-nos os cabelos em face do prognóstico que oferece à democracia e à liberdade. Resta judicialmente decretada, no Estado do Rio Grande do Sul, a impossibilidade de criticar-se, no fato consumado da violência, e mais do que isso, na agressão deixada consumar-se pela autoridade pública presente em ato de vandalismo, a omissão e a permissividade do governo estadual. Nos anos negros que prepararam o Holocausto, pela ação das SS na Alemanha e dos brigadistas de Mussolini na Itália dos anos 30, quando se destruíam os símbolos da oposição - se invadiam gráficas, empastelavam jornais, violavam lares, quebravam empresas - e enquanto se procedia nestes atos a destruição da propriedade, a autoridade pública chamada a comparecer, por ser também "respeitosa" do movimento social, chegava apenas a posteriori dos fatos consumados, para inventariar o tamanho do estrago nas hostes dos seus adversários e cinicamente lamentar o ocorrido. Então, também, não havia espaço para a crítica, e quem o fizesse arrostava toda uma série de conseqüências, inclusive a condenação à prisão por crime de "lesa majestade" do condutor do Estado. Hoje, semelhantemente, no Rio Grande do Sul, a depredação da propriedade privada, efetivada aos olhos da força policial, não pode mais ser criticamente atribuída à responsabilidade do governante - desde que este vem a Juízo, manifesta ali a consistência das suas idéias, como superior "respeito aos movimentos sociais e seus posicionamentos" e, eventualmente, lamenta o ocorrido, conformando nisso razão suficiente para sancionar-se judicialmente, por delinqüente, a conduta profissional do denunciante de tal arremedo de responsabilidade pública. Promove-se, depois e não obstante, por mérito, aos oficiais participantes e coniventes com a violação do direito. E quem se atreveu em ver nisso autorização tácita da violência, é condenado a cinco meses de detenção. Isto é fascismo, e se não puder afirmá-lo, rasgo meu diploma de doutor em ciência política.
Condenações (e liminares concedidas para apreensão de jornais, que divulgaram informação relevante, mas contrária aos interesses eleitorais-partidários do PT) como estas, que o Judiciário gaúcho tem prolatado, em flagrante cerceamento à liberdade primeira, entre todas as demais, que é a de expressão e informação; e outras tantas absolvições que - não é lícito esquecer-se - mais caracterizam a imposição de inexorável e antecipada punição, aos assim "acuados" cidadãos que, eventualmente, tiveram a ousadia de desafiar o poder de Estado ou seus apaniguados; processos sumários ou estendidos, que vem impondo à inteligência crítica e formadora de opinião toda sorte de percalços, no enfrentamento oneroso e desigual de uma máquina jurisdicional usada e abusada - como instrumento de luta política personalista ou partidariamente aparelhada - como se fora um braço oficioso da truculência que, no exercício de próprias e particulares razões, eventualmente ocupa o Palácio de Governo; tudo isso, em flagrante desvio de finalidade dos poderes de Estado e numa sistemática violação de direitos constitucionais fundamentais, têm-se incorporado ao cotidiano do nosso convívio no limiar do novo século, e coloca em pauta na agenda da consolidação e radicalização da democracia, um tema recorrente da Reforma Judiciária: a necessidade de se formular e implementar regras e desenvolver capacidade institucional para o controle externo da constitucionalidade dos atos, decisões e omissões, das autoridades e organizações jurisdicionadas à garantia e defesa dos direitos fundamentais.
A acusação sem provas, já é de per si uma condenação; a condenação sem fundamento jurídico-constitucional é duplamente criminosa. E quando ambas estas práticas, se amalgamam e se exercitam, de forma sistemática, como pára-choque político e escudo institucional da violência e do exercício arbitrário das próprias razões, pelos governantes ou por grupos ou segmentos sociais organizados à sua sombra, instaura-se a lei do movimento, que é a própria essência do totalitarismo (Hannah Arendt), e cuja forma última de manifestação, quando a sociedade civil já não lhe consegue oferecer resistência, é o domínio do crime organizado? ontem, das milícias nazi-fascistas, hoje, das facções terroristas e dos comandos do tráfico.

Por isso, a morte de Tim Lopes tem tudo a ver com a condenação de Rech, Barrionuevo e tantos outros, e com o processo do Professor e cientista político José A. G. Tavares, por trazerem fatos à esfera pública e expressarem uma visão crítica da política governamental. E todas estas tragédias da nossa atual condição cidadã têm tudo a ver com a luta de classes, que se doutrina nas nossas escolas, e com a lei do silêncio que começa a se impor nos seus pátios; com o patrulhismo ideológico, que discrimina funcionários na administração pública estadual, e com o toque de recolher imposto pelas milícias do tráfico nas nossas vilas de periferia; com a auto-suficiência de um Poder Executivo que descumpre acintosamente decisões judiciais, e com essa singular ocupação das nossas instituições comunitárias e dos espaços de participação autônoma da cidadania, pelos pelotões organizados de uma militância ideológica e partidária, que não reconhece limites na instrumentação do poder público, para a consecução dos seus objetivos particulares, e que hoje transita célere ao aparelhamento da violência privada, para a consolidação da sua hegemonia.
Os sinais dos tempos estão evidentes. Não há como desconhecer que este já é um tempo de resistência civil. Felizes daqueles que conseguirem sobrevivê-lo com dignidade. Como os da minha geração, que vencemos a guerra de uns tempos atrás, amealhando galardões na repressão e nas prisões da ditadura, as novas lideranças da democracia já começam a contar seu mérito pela acumulação dos processos respondidos e das condenações sofridas nos Tribunais da nova ordem. A diferença está simplesmente no fato que os opressores da liberdade, que antes eram fardados, hoje vestem a toga. Mas, esta condição do nosso tempo ainda não é irreversível na escala de uma geração. Provar isso é o grande desafio contemporâneo da agenda democrática neste país.
Não se tem visto, entretanto, na esfera correicional do Poder Judiciário, que é onde o manifesto descumprimento da Lei e da Constituição, numa efetiva derrogação do regime democrático e republicano pelos juízes, deveria ser coibido - até mesmo de ofício, pelos Tribunais superiores - quaisquer iniciativas nesta direção. De outro lado, a auto-regulamentação dos próprios limites éticos, na instrumentação jurídica do projeto político dos governos pela Advocacia de Estado, é uma questão aparentemente ausente nos debates, que se vem promovendo em defesa das suas prerrogativas. De sorte que, assim, entre o apetite legislativo de quem deveria aplicar a Lei, e a voracidade política de quem deveria garantir o Estado de Direito e a incolumidade da cidadania, corremos o risco de ver institucionalizado um arremedo de processo, onde à contumácia da acusação temerária e da litigância de má-fé nas procuradorias do Estado, conjuga-se uma sistemática de inquisição privada no âmbito jurisdicional; tendências estas, convergentes a uma perigosa ultrapassagem dos limites de segurança democrática, que o dano potencial irreversível das suas iniciativas e decisões impõe à consideração e respeito por parte dos operadores públicos do direito.

Neste contexto, o que parece viger, em grau e extensão crescente em nosso meio, pode ser designado pelo conceito político do neocorporativismo: um exercício condominial do poder, no conluio fático das instâncias e instituições que se deveriam, mutuamente, controlar e limitar - no caso, os Poderes Executivo e Judiciário.
Já escrevi em outro momento (A Democracia Plebiscitária, Ed. da Universidade-UFRGS/Ed. La Salle, 1995), que a nenhuma corporação isolada, na democracia consolidada e radicalizada que desejamos, deveria ser dado o monopólio do Pacto Social. Isso significa, a exemplo do que ocorre noutras experiências consagradas do regime Republicano, que deveríamos prever alternativas para emendar a Constituição, que pudessem passar ao largo dos interesses das Casas Legislativas - até como um mecanismo de pressão, para forçar-se a inclusão em pauta congressual dos temas tabus que adormecem nas suas gavetas como, por exemplo, o da Reforma Política. É salutar, neste sentido, venha ou não ser contraditada por decreto legislativo, a iniciativa do Superior Tribunal Eleitoral que decidiu sobre coligações partidárias, numa extrapolação sistemática dos princípios legais e constitucionais da representação política, preenchendo um vazio de legislação, deixado em aberto pela dificuldade extrema de autocorreção do próprio percurso pelo nosso sistema político-partidário.
Devo acrescentar agora que, semelhante dificuldade correicional, parece incidir também no comportamento institucional do Poder Judiciário; mormente, agora e em nosso meio, na eventual e sob todos os pontos de vista indesejável, conjugação de interesses, que articula a persistente sensibilidade deste Poder às "razões de Estado", as quais, não obstante, têm-se reduzido, sintomaticamente, a meras "razões de governo", eventualmente, a subalternas "razões de partido". Conveniente, portanto, pensar na fórmula política, através da qual o controle constitucional - em garantia das liberdades fundamentais - pudesse ser partilhado na tecitura institucional da República entre diferentes segmentos e corporações, cuja presença no cenário político nacional esteja umbelicalmente comprometida com a garantia da segurança democrática.
Uma modificação substancial, nos mecanismos e no processo do controle constitucional é impositiva. Seja pela extensão destes poderes a um redefinido Conselho de Segurança Nacional; seja por uma alteração significativa nas regras de composição e investidura do Tribunal Constitucional - o STF; de qualquer forma, parece oportuno e conveniente abrir-se espaço à participação efetiva e à auto-limitação cooperativa dos próprios atos e omissões, às corporações que atuam na implementação e garantia das liberdades fundamentais. É preciso ouvir, neste momento, o que têm a dizer e a contribuir para o controle constitucional do convívio democrático, minimamente, as forças armadas, as instituições da imprensa, as instituições jurídicas, as universidades e os partidos políticos.
*Professor de ciência política da UFRGS e advogado.

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