Tarefas do Grande Irmão na Casa dos Autistas

Por Deonísio da Silva Um triângulo com um olho no meio. A figura, sob a qual havia inscrição “Deus me vê”, pôde e pode …

Por Deonísio da Silva
Um triângulo com um olho no meio. A figura, sob a qual havia inscrição "Deus me vê", pôde e pode ser vista em diversos ambientes, sobretudo nas paredes das salas de aula. Um recurso simbólico ajudando diretores e professores na tarefa de vigiar e punir os alunos.
Mas quem era Deus quando o tal triângulo era ubíquo? O Catecismo da Doutrina Cristã não deixava dúvidas: "Deus é um espírito perfeitíssimo, criador do Céu e da Terra". Quem eram as catequistas? Em geral, as próprias professoras. Aliás, tudo de acordo com o figurino da civilização ocidental, vez que as escolas começaram nas sacristias e, especialmente no Brasil, nossos primeiros professores foram padres, notadamente jesuítas. Uma outra questão fundamental do CDC indagava: "Para que vivemos na Terra?" A resposta, como todas as outras, estava pronta; só precisávamos decorar: "Vivemos na Terra para salvar a nossa alma". Logo haveria quem explicasse que "decorar" era bem diferente de "memorizar", esmiuçando a etimologia: decorar era guardar no coração, não apenas na cabeça. Talvez, em futura linguagem eletrônica, no hard disk (HD) e não apenas no disquete.
Pois tanto a Casa dos Artistas, do SBT, como o Big Brother, da Globo, assemelham-se àquelas antigas classes, capelas e corredores. Os telespectadores ocupam o lugar daquele triângulo e os artistas ali reunidos são a nova classe sob observação. Não é à toa também que já surgiu variante jocosa para a denominação: Casa dos Autistas, para o primeiro, e Grande Irmão, para o segundo, com uma diferença essencial entre as metáforas: o Grande Irmão vigia, os autistas são vigiados. O povo sabe o que fala: vigiar e ser vigiado são ações que se completam. Quem sabe que está sendo vigiado, vigia a câmera, vigia o olho do outro.
Mais exemplos? Os dossiês dos candidatos. Para cada dossiê com denúncias, há outro com denúncias semelhantes brandidas contra o denunciante anterior. E surgem dossiês autistas, ou aloprados, como disse o candidato José Serra sobre denúncias do ex-presidente e atual senador José Sarney.
Inocência e entretenimento
Os autistas foram identificados não faz cem anos. O autismo surgiu primeiro na língua alemã. "Autismus é o mesmo que Freud chama de autoerostismus", escrevia em 1911 o inventor da palavra, o psiquiatra suíço Eugen Bleurer (1857-1939). No ano seguinte, a nova palavra aparecia no inglês e em 1923, no francês. No Brasil, autismo e autista somente vão aparecer na terceira edição (a primeira é de 1938) do Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa, em 1943, segundo nos informa o Dicionário Houaiss. Os autistas seriam pessoas que criariam um mundo autônomo - daí o termo - sem vinculações com a realidade circundante.
Já o Grande Irmão tem procedência britânica. Veio de 1984, romance de Eric Arthur Blair, que usou o pseudônimo George Orwell, conhecido por suas irônicas e mordazes críticas à sociedade de seu tempo. Ele adotava posições abraçadas pela esquerda, sempre porém com independência, tanto que 1984 radica seus temas e problemas, não apenas nas condições de vida do operariado inglês, mas sobretudo no totalitarismo soviético, duramente espelhado no livro como um sistema que tudo vigia, até mesmo as expressões faciais dos indivíduos.
Talvez não tenham sido nem a psiquiatria e nem a literatura que melhor iluminaram a questão daquele antigo olho num triângulo, mas sim a filosofia, pelo estilo fascinante e engenhoso de Michel Foucault com o livro Vigiar e Punir: nascimento da prisão, publicado originalmente em 1975. As ações solares do poder, concebidas até então com funções de reprimir e impor determinada ideologia, foram substituídas, com mais eficácia, por ações praticadas, não apenas em prisões e tribunais, mas no exército, na escola, no hospital, no manicômio, no orfanato, na fábrica. Poucos parágrafos de Foucault sintetizam tanto o novo olhar como este:
"A modelagem do corpo dá lugar a um conhecimento do indivíduo, o aprendizado das técnicas induz a modos de comportamento e a aquisição de aptidões se mistura com a fixação de relações de poder; foram-se bons agricultores vigorosos e hábeis; nesse mesmo trabalho, desde que tecnicamente controlado, fabricam-se indivíduos submissos, e constitui-se sobre eles um sabor em que se pode confiar".
Por essas e outras, o sistema engendrado nos dois programas por Globo e SBT não têm a inocência ou o entretenimento das novelas e de outras ofertas como o Show do Milhão e as transmissões esportivas. O telespectador é convocado a mirar-se no exemplo dos reclusos e confinar-se ele também junto ao simulacro onde aqueles que observa foram encerrados.
A melhor ferramenta
A imprensa já está dando conta de que os jovens são maioria entre a audiência e a assistência. Com efeito, as ações requeridas parecem ser apenas a de ver e ouvir, mas embutida vem a mais grave: imitar, receber como padrão os comportamentos ali apresentados. Ou, visto de outro modo, preparar-se para ser excluído no caso de discordar do coletivo. No fim, apenas um vencerá, No fim, vence apenas o mais obediente, não é mesmo? Mas a submissão é disfarçada em complexas operações para as quais um artigo de crítica veloz não é suficiente, tendo apenas o objetivo de coçar problemas de domínio conexo ainda intocados nas críticas, ou referidos também velozmente, porque tudo ficou muito rápido. O único que não se mexe é o telespectador que, tratado como hortaliça, é regado todos os dias com a boa água destilada na telinha, cuja função principal talvez seja a de evitar que a má água (mágoa?) vertendo em outras torneiras não venha a inundar o recinto onde todos foram confinados, mas cada qual em seu lugar. O do telespectador será o de, imobilizado, ver e ouvir e, se quiser facilitar o trabalhos do "autistas" e dos "grandes irmãos" (um apenas em meados do século passado, hoje apresentam-se organizados em famílias, como a velha máfia), também imitar os bisbilhotados.
Para concluir: quem é Sílvio Santos? "Um empresário perfeitíssimo", um exemplo a ser seguido, podendo, de acordo com as circunstâncias, como ocorreu em passado recente, ser até candidato a presidente da República. Não desprezemos o poder da mídia que, na Itália, elegeu Berlusconi. Para que vivemos no Brasil? Ora, esta é muito fácil: vivemos no Brasil para ver televisão. Principalmente porque a escola pública está caindo aos pedaços e as ruas, infestadas de perigos.
Não nos assustemos, porém. É verdade que os jovens acotovelados diante de Casa dos Artistas e do Brig Brother foram mais educados pela televisão (terá havido uma "xuxalização" do Brasil?) do que por pais e professores. Mas quando eles se deram conta do pior, pintaram o rosto e foram às ruas exigir a deposição do presidente que os convocara a vestir outras cores para mostrar como estavam de acordo com ele e seus métodos. Desobedeceram a quem o Grande Irmão tinha ajudado a eleger e exigiram que o Congresso o derrubasse. Foram atendidos.
Em resumo, há um conforto, oásis e refrigério no meio de tantos problemas e incertezas: por mais que as campanhas eleitorais tragam vícios, no Brasil atual quem manda não são ainda os Grande Irmãos, nem o colégio eleitoral reduzido dos que dirigem a Casa dos Autistas: é a sociedade. E nem todos os seus membros estão imobilizados diante de televisões.
Neste cenário, avultam as obrigações dos intelectuais, a principal delas sendo a de criticar à luz de seus saberes específicos, de suas leituras, o Brasil que lhes é dado contemplar para nele interferir com a principal ferramenta de trabalho de que dispõem: a palavra.
(*) Escritor e professor da UFSCar, doutor em Letras pela USP. Seus livros mais recentes são o romance Os Guerreiros do Campo e De onde vêm as palavras. Este artigo foi publicado originalmente no site www.observatoriodaimprensa.com.br.

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