TV Digital: Com ou sem política de comunicação?

Por José Carlos Torves Entre 2001 e 2002, final do segundo governo de Fernando Henrique Cardoso, já se apontava para a implantação da TV …

Por José Carlos Torves


Entre 2001 e 2002, final do segundo governo de Fernando Henrique Cardoso, já se apontava para a implantação da TV Digital no Brasil em 2003, sem a participação da sociedade, seguindo a pauta das grandes redes de TV. Neste período já havia sido instalado o Conselho de Comunicação Social, órgão auxiliar do Congresso Nacional, que junto com o FNDC (Fórum Nacional pela Democratização da Comunicação), se mobilizou conseguiu travar o processo.


Dois anos depois, já no Governo Lula, a conclusão é a mesma do governo anterior na implantação do SBTVD (Sistema Brasileiro de TV Digital), visando apenas uma melhor qualidade de som e imagem da televisão, poucas possibilidades de criação de novas emissoras, reforçando o monopólio e sem nenhuma política pública de comunicação articulando setores afins - como a indústria nacional de semicondutores e componentes eletroeletrônicos, geração de renda e trabalho e diretrizes para a cultura, ou seja, produção de conteúdos.


A tecnologia digital permite que se receba pela televisão mais informações sob a forma de dados, uma vez que quanto maior o poder de compressão dos sinais, mais conteúdos estarão disponíveis. Mas toda esta tecnologia, com esta grande possibilidade, não poderá apenas servir para uma melhor qualidade de som e imagem da televisão, também é importante que seja explorada na sua capacidade de interação, inclusão social e a inserção de sujeitos desprezados pela mídia brasileira que possui um dos maiores índices de concentração mundial.


Dos três sistemas que estão disputando o mercado brasileiro, o que tem a menor chance é o norte-americano (ATSC); o europeu (DVB) ainda está na disputa; e o japonês (ISDB) tem a preferência das grandes redes de televisão, especialmente a Rede Globo, e do ministro das Comunicações Hélio Costa, embora seja o que possui o menor mercado consumidor, pois foi testado apenas em duas cidades japonesas. As diferenças técnicas entre os três padrões são insignificantes, é o que diz a Fundação CPqD, depois de dois anos de pesquisas a um custo de R$ 38 milhões.  Uma outra questão relevante são os royalties que devem ser pagos, conforme o sistema escolhido. No sistema norte-americano é de 100%, embora já se admita que possam ser rebaixados até 50%; no sistema europeu é de 50%, mas pode baixar um pouco mais, caso o Brasil optar por ele; e o sistema japonês já assegurou que libera o Brasil do pagamento. Os relatórios simularam duas situações de adaptação ao sistema nacional, uma com o DVB e outra com o ISDB: a diferença é apenas a tecnologia que será aplicada. Entretanto, um parecer mais conclusivo depende da instalação de uma estação experimental, já solicitada ao governo, cujo custo é de R$ 2,5 milhões, pois assim será possível avaliar os impactos e a análise de resultados.


Segundo a CPqD, o custo da transição do sistema será de R$ 6 bilhões, sendo que dois terços da população que vai arcar com este custo, é justamente a que está alijada do processo em discussão. Esta estimativa é com base na troca de receptores (estimado entre R$ 100,00 e R$ 200,00) que deverá ocorrer nos próximos 15 anos, para quem quiser captar sinais de televisão. Hoje no Brasil tem 60 milhões de aparelhos de televisão em uso.


Um outro documento - Mapeamento da Cadeia de Valor da TV Digital - ainda ressalta para a necessidade de "adequar o quadro regulatório à introdução da TV digital no país", o que segundo o FNDC,


  "?poderia ser usado para justificar a opção por um cenário conservador de introdução da tecnologia digital, mantendo a concentração da propriedade e a fragmentação da regulamentação, como também poderia ser usado para promover a revisão do marco regulatório do setor, implementando mudanças que levem à democratização e à reestruturação real do espectro e dos sistemas e mercados de comunicações" (FNDC, 2006:11).


Mas o que realmente esta em jogo no processo decisório do SBTVD? Quais os interesses que estão em disputa? Quem ganha e quem perde?


Esta é a principal problemática e o que de certa forma tem adiado a decisão pela escolha do sistema. De um lado estão organizações como o FNDC e Intervozes - Coletivo Brasil de Comunicação Social, Entidades de setores afins (FENAJ, FITERT, ABRAÇO e outros) e a sociedade civil organizada, que defendem o adiamento da decisão sobre qual o sistema a ser adotado no Brasil, pois entendem que o debate seja amplo na sociedade, para que todos se apropriem de todas as informações e de suas implicações, inclusive os membros do próprio governo e os parlamentares. A perspectiva é que com um debate público se reverta o quadro de desregulamentação que se mantém há anos e que se abra espaço para uma nova lei de comunicação eletrônica de massa, além de princípios, há muito tempo perseguidos, como democratização das comunicações, convergência das mídias, interatividade, inclusão social, impulso da indústria audiovisual, assegurar a diversidade cultural e regional e garantir espaço aos produtores independentes exibirem seus programas com isto garantindo a pluralidade e a qualidade na produção de conteúdos. Também as TVs Públicas, que além de chegar a todos os pontos do país, terão maior capacidade de produção e arquivo de programas educativos, possibilitando o acesso de professores da rede pública de ensino as produções com objetivos de atualização pedagógica e de inclusão social. A Educação também tem grande interesse nesta nova tecnologia, pois além da interatividade, irá otimizar o ensino a distância.


Do outro, estão as teles (Empresas de Telefonia Fixa e Móvel) e as emissoras de TV (Grupos de Televisão Aberta), cujos únicos objetivos são garantir seus lucros e acabar com a indústria nacional, uma vez que o ministro das Comunicações, Hélio Costa, acenou com a possibilidade de liberar as importações de equipamentos com isenção de tarifas. Embora estejam em situação oposta aos interesses da sociedade civil, há divergência entre elas.


Esta disputa entre as teles e radiodifusores sobre a mobilidade tem mascarado para  a opinião pública o debate sobre as questões de fundo que estão em jogo, explicitado nas propostas de organizações não governamentais, entidades e sociedade civil.


Os radiodifusores defendem o sistema japonês ISDB, que permite a transmissão de sinais de televisão para celulares sem a utilização dos canais de telefonia, portanto, dentro do discurso de que a TV Digital deve ser aberta e gratuita, como é atualmente, ou seja, livre de qualquer regulação, e "gratuita" entre aspas, pois o custo da publicidade é incorporado ao preço final do produto e pago pelo consumidor. Alegam ainda que as suas receitas têm como única fonte a venda de espaços publicitários, portanto, a abertura do mercado para as teles inviabilizaria seus negócios, além do que, com a  participação do capital estrangeiro limitado a 30%, ficaria inviável fazer frente às teles, que têm grandes investimentos externos. No entanto, o que está por trás é o interesse das emissoras em manter unicamente sob seu domínio a produção e distribuição de conteúdos. As teles defendem o sistema europeu DVB, porque este facilitaria a transmissão de conteúdos em uma faixa adicional, não ficando restrita às faixas dos radiodifusores. Uma diferença fundamental do sistema japonês ISDB para o europeu DVB é que o transporte de conteúdos, tanto terrestre como móvel, somente poderá ser feito por uma operadora, situação que interessa às emissoras de televisão abertas, enquanto às teles interessa o DVB, que permite duas operadoras para o transporte de conteúdos - uma para o terrestre, que ficaria com as emissoras, e a móvel, que ficaria com as teles.


Num outro patamar estão os fabricantes de equipamentos, a indústria nacional que, além de fabricar, poderá exportar os produtos da TV Digital. Os produtores de tecnologia nacional, um setor bastante avançado, poderão ter um incentivo e crescimento ainda maior, deixando de ser dependente e livrando o país da importação e do pagamento de royaltis.


Notamos que em todas as fases da televisão, os avanços tecnológicos têm influenciado não apenas a forma de recepção, mas também o comportamento da sociedade. As várias tecnologias colocadas à disposição, desde os sistemas de transmissão aos equipamentos, como controle remoto, videocassete, CD e DVD, deixaram para trás um telespectador passivo e deram lugar a um outro que quer interagir, programar os seus vídeos preferidos nos horários que correspondem a sua agenda, não se submetendo às grades das emissoras e indo além, editando em "real time" o que mais está de acordo com seus interesses e com a qualidade desejada.


Neste cenário é que vai surgir a TV Digital brasileira. Certamente não será uma simples troca de tecnologia, analógica para digital, que irá resolver problemas estruturais, sociais e de ordem jurídica que acompanham a TV no Brasil desde a década de 50. A questão estrutural está centrada na falta de qualidade da televisão brasileira, falta de inspiração dos produtores, anacrônica e sem criatividade. O país teve um crescimento no seu nível de educação e a TV não acompanhou, continua pobre intelectualmente. No campo social há uma demanda não atendida de participação, controle social da programação, quebra do monopólio, transparência nas concessões, produção regional e diversidade cultural social e política. O ordenamento jurídico não dá conta da realidade, há de fato uma desregulamentação do setor, que serve e atende os interesses privados dos radiodifusores, sob a complacência governamental.


Portanto, uma TV Digital, como querem os grandes grupos da mídia nacional, apenas para ter sons e imagens de qualidade (analógica 525 linhas de resolução enquanto a digital é de 1.080 linhas), mantendo o atual quadro de crise da televisão brasileira, não justifica o alto investimento que a sociedade irá arcar nos próximos anos. Quanto às teles, que estão de olho no mercado brasileiro (4º no ranking mundial), o interesse é apenas econômico, o Brasil tem hoje 100 milhões de telefone móveis e 60 milhões de aparelhos de televisão, números nada desprezíveis do ponto de vista financeiro, que obviamente despertam a ganância não só de transportar mas também produzir conteúdos. Esta é a disputa principal entre teles e emissoras, e as duas posições estão longe de contemplar os anseios da sociedade. Muito pelo contrário, as teles produzindo conteúdos, nos levam para um caminho árido que é a desnacionalização das produções, da mesma forma que as emissoras privadas tentam manter sob a sua exclusividade a produção de bens culturais. Nenhuma das duas, teles e emissoras, está preocupada em contemplar a produção independente, a regionalização ou a diversidade cultural.


A definição do sistema a ser implantado no Brasil para a TV Digital nos abre uma possibilidade única, que é estabelecer um novo marco regulatório nas comunicações, de uma nova Lei de Comunicação Eletrônica de Massa, de consertar o erro que foi separar as Telecomunicações (Lei 9.472 de 1977 - Lei Geral das Telecomunicações), que responde diretamente à Anatel (Agência Nacional de Telecomunicações) da Comunicação Social Eletrônica, que atende as rádios e TVs abertas, e subordina ao Código Brasileiro de Telecomunicações (Lei 4.117 de 1962), respondendo ao Ministério das Comunicações.


Também nos abre a possibilidade de democratizar as comunicações no país, através das produções independentes e a inclusão de atores sociais, antes marginalizados pelos veículos de comunicação. A regionalização pode propiciar esta inclusão, mas também a valorização da cultura das regiões que ficam à margem dos grandes centros de produção. A interatividade, a convergência das mídias e a inclusão digital é que vão propiciar o acesso a uma infinidade de novos serviços e, por conseqüência, a inclusão social dos cidadãos.


Enfim, uma nova tecnologia não serve apenas para perpetuar os donos da mídia (seis famílias mantêm o controle de 667 veículos) e as suas banalidades.  

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