Um ano sem Betão Andreatta

Por André Luis Pereira Um ano depois do Betão nos deixar, escrevo motivado pelo fato de que são raríssimos os registros sobre a carreira profissional do Humberto Andreatta. Ao …

Por André Luis Pereira

Um ano depois do Betão nos deixar, escrevo motivado pelo fato de que são raríssimos os registros sobre a carreira profissional do Humberto Andreatta.


Ao que eu saiba, ele não tem perfil publicado. Nunca foi integrante da turma que corre atrás de prêmios jornalísticos. Jamais se preocupou em fazer marketing pessoal. Mas como era íntegro, honesto e solidário na vida pessoal, transferiu naturalmente  tais virtudes para a carreira e o relacionamento profissional. Quem o conheceu, sabe bem disso. Espero que quem não conheceu o Betão possa saber um pouquinho do exemplo dele agora, mesmo fazendo o obrigatório desconto e extraindo o excesso de sentimento que impregna o texto deste amigo que, por força da parceria, acaba, às vezes também como inadvertido  protagonista.


1.


Há um ano, na tarde de um domingo, 4 de novembro de 2007, morreu aos 57 anos, fulminado por súbito ataque do coração, o Humberto Andreatta,  o Betão, que foi um dos melhores jornalistas gaúchos dos últimos 30 anos. Neste período, Betão participou de todos os projetos importantes do jornalismo gaúcho, da Cooperativa dos Jornalistas de Porto Alegre (Coojornal) nos anos 70 ao Diário do Sul no final da década de 80, passando pela rádio Cultura FM e pelo jornal Folha da Manhã, sem contar a sucursal do Jornal do Brasil e Zero Hora, nos quais trabalhou por longos períodos. De repórter de qualidade transformou-se logo em um excelente editor graças à grande capacidade agregadora, qualificado pelos dotes de gestão editorial e de liderança de grupos. Nesta condição, foi editor de uma inédita agência de notícias da Coojornal, do Jornal do Grêmio (clube pelo qual torcia amorosamente) e do suplemento cultural de vídeo Expectador, do saudoso Diário do Sul.


Era um profissional de primeira, com texto ajustado, criativo e sem firulas lingüísticas.


Escreveu um livro, "A Guerra dos Bugres- A Saga da Nação Kaigangue" (Editora Tchê, 1986), em parceria com Carlos Wagner e A. Pereira, com temática extraída de uma série de reportagens publicada em Zero Hora.


Ganhou prêmio por outra série, sobre colonos, "O Grito do Campo" publicada no jornal O Interior, de Carazinho, das vizinhanças da sua Sarandi, onde nasceu no dia 8 de fevereiro de 1950.


Ser humano diferenciado, sensível e generoso ao extremo, talvez mais gostasse de partilhar sua valiosa bagagem profissional com jornalistas mais novos - como os dois filhos que teve com a "Côca" Noemy, com quem era casado há três décadas: a Luciana e o Mateus. "Era um formador de equipes de jornalistas e um líder que liderava com ternura", define o Marques Leonam, definitivo.


2.


Quando o Betão Andreatta comprou sua primeira casa, lá no meio do mato que era o Parque dos Maias, no final dos anos 70, na época em que nasceram a Luciana Franke Andreatta e o Pedro Joner Pereira, eu me envolvi ativamente com a empreitada que encaminhava o gringão para apalpar o sonho caro da casa própria.


Ajudei-o a prospectar o futuro bairro no descampado da zona norte da Capital, palpitei sobre o financiamento do BNH (que era um banco nacional de habitação criado para financiar imóveis populares) e visitamos o local na camioneta Marajó (ou Ipanema ou Veraneio) que ele tinha. E depois, ele instalado ali no condomínio de casas de alvenaria geminadas, de dois dormitórios,  promovemos reuniões, jantares, almoços, churrascos, a que não faltavam o hoje professor-mestre-doutor da UFSC, Mauro César Silveira, o nosso Cervejinha, e a mulher, a chilena Luisa, que eram os vizinhos mais próximos, moradores do Parque Humaitá, a uma dezena de quilômetros.


3.


Eu fui muito amigo do Betão nos anos 70 e 80.


Jovens de 24, 25 anos logo casados e transformados em pais de famílias, com novos problemas individuais e conjugais sobrepondo-se às  pendengas profissionais, começamos a nos afastar. Mas antes convivemos em famílias, trabalhamos juntos e até tivemos uma sociedade comercial, a agência de fotos e textos "Ponto de Vista", que compartilhávamos com os fotógrafos Eneida Serrano, Jacqueline Joner, Genaro Joner, Luiz Abreu e o Raul Sanvicente, que hoje, felizmente, é juiz trabalhista bem postado na vida. Conciliar amizade, famílias e negócios? não era para nós, jovens jornalistas daqueles idos idealistas. Depois de vendermos alguns frilas e produzirmos os livros de fotos Ponto de Vista e Santa Soja, a sociedade se desfez. Eu fui passar uma temporada em Carazinho, aceitando uma tentadora proposta do Waldir Heck (que conhecera através do Betão), para editar O Interior, onde penava o foca Carlos Alberto Wagner, estagiava nas férias o Hélio Schuch, diretor da faculdade de Jornalismo da Universidade Federal de Santa Catarina, e iniciava carreira o Roberto Thomé, repórter esportivo do SBT, ou da Record, em São Paulo.


Reencontrei o mesmo amigão no início dos 80.


Mais tarde, em 1987 ou 1988, nos diferenciamos na greve do Diário do Sul: eu aderi (querendo não aderir) e ele não aderiu (querendo aderir) naquele singular redação de inusitadas relações trabalhistas, profissionais, afetivas em que acho que para ele pesou mais a lealdade ao diretor de redação e idealizador do projeto Hélio Gama do que seguir a decisão da assembléia do nosso sindicato.


Antes dele, sai do Diário do Sul e acabamos nos perdemos. Eu não sei, e acredito que nem ele sabia, o que, exatamente aconteceu. 


Como me separei conjugalmente, não mantive as mesmas relações matrimoniais e programas de casal e - talvez - isto tenha contribuido para trilharmos caminhos diferentes daí em diante. O  distanciamento, para mim, foi muito ruim por perder o convívio maravilhoso com o Betão, com sua afetuosidade, sua lendária gaitinha de boca e a torcida inflamada pelo Grêmio. Mas, hoje me consolo pensando que foi bom por outro ângulo: porque as valiosas lembranças, todas afetivas, densas e sensíveis, ficaram intactas, preservadas como símbolos desses mais de 30 anos desde que nos conhecemos.


A Liliane Froelimg, que teve uma relativamente breve convivência com o Betão (que ela chamava de Bigode) no início dos anos 70, lembra que foi tão intensa que esta fase de sua vida se tornou inesquecível e profundamente marcante mesmo que tenha sido curta.


Lili recorda que conheceu o Bigode graças ao modelo de curso básico que existia, na época, na universidade pública. No tal sistema de ano básico da Ufrgs, desaguavam todos os aprovados no vestibular. Eram reunidos, heterogeamente, independemente dos cursos que frequentariam depois, a partir do segundo ano universitário. Ela cursou Psicologia, sua conterrânea de Ijuí Rita Fricke fez Arquitetura como a Pifa enquanto a Janete, outra das amigas do interior com quem elas dividiriam moradia na capital, formou-se em sociologia.


O certo é que o Beto "vivia" na casa da Lili, em apartamentos na João Obino e depois na Rua da República, atraído por um laboratório fotográfico que a Rita montara improvisado no banheiro. E as gurias "viviam" no apartamento da família do Betão na avenida João Pessoa seduzidas pelos discografia do amigo e pela cordialidade familiar que, elas gurias do interior, não tinham na cidade grande.


A família era o pai, um ex-seminarista de origem italiana, a mãe cordial e hospitaleira, o mano Mário, a mana Suzi e o menorzinho Paulinho, que caiu dos altos de uma arquibancada, sofrendo danos irreversíveis na coluna que paralisou o pequeno da cintura para baixo.


Com o pai, Beto tinha aqueles desentendimentos filiais próprios, bem comuns, na nossa época - quando existia o que se chamava, sem bem me recordo, "de choque de gerações".


Em julho de 1976, a Rita embarcou para o norte, integrando o Projeto Rondon, e o Beto mantinha com ela uma correspondência regular, com cartas manuscritas que ela guarda como relíquia, na casa dela em Ijuí para onde voltou, para exercer a profissão de arquiteta.


Em uma delas, Beto relata que conversou com o pai e compreendeu seu ponto de vista. Escreveu na caligrafia caprichada costumeira.


No dia 5 de novembro do ano passado, cedo, avisei a Liliane do horário matinal do enterro, deixando um recado no gabinete do Raul, na Assembléia, que ela só recebeu à noite. Avisou a Rita em Ijuí que trouxe cartas e fotos que ela fez do Betão e uma que ele fez dela, naqueles exercícios de clicar pessoas que ele adorava.


Nos negativos da era-pré digital que ela guarda também como relíquia, está escrito:


Fotos do Bigode, filme puxado, ASA 1600.


Puro linguajar de entendidos, e íntimos.


4.


No domingo (04/10/2007) à noitinha, alertado por um telefonema do Zéantônio SSilva, corri para o cemitério e cheguei na capela 7 por volta das 19h30. Não havia ninguém. Nem mesmo o Betão "tinha chegado". Fiquei um bom tempo ali, sólito, recordando o passado que nos uniu desde que ele me ensinou, em um bar da Avenida João Pessoa (Pica Pau ?) perto da casa de seus pais, que era indispensável manter, sempre, um copinho de underberger ao lado da cerveja gelada. "Dá um sabor especial à cerveja", dizia. 


Ele, mais organizado, provavelmente lembraria como nos conhecemos, ele na Fabico, na Ufrgs; eu na Famecos, na PUC.


O certo é que logo me afeiçoei àquele grandalhão de 1,87 metro , sensível, terno, como se imagina um urso inofensivo e amistoso, se que é existem ursos inofensivos e amistosos. Tinha um bigode imenso, arruivado, e no inverno usava um boné de veludo azul escuro que escondia a prematura calvície no centro da cabeça.


Na casa paterna, digo, mais materna, Betão recebia amigas e amigos todas às noites no início dos anos 70, depois do trabalho e das aulas na faculdade.Ou, às vezes, durante os horários das aulas. Entre estes, a futura psicóloga Liliane Froelich, as pré-arquitetas Rita e Pifa (Helena Maria Gomes, que mora em São Paulo ) e a Janete Halmenschlagen, hoje socióloga.


Não eram jornalistas, mas ali compareciam antes de investidas a bares das redondezas (que incluiam os botecos da esquina maldita, quase defronte da Arquitetura da Ufrgs) ou a sessões de cinema à meia noite, atraídas pela conversa "politizada-existencialista" que aquela geração vivenciou, em meio à ditadura militar, o decreto 477 e o AI-5 que iam fechando todas as possibilidades de se fazer política, tocando todos para uma certa semi-clandestinidade.


Enquanto maquinavámos como mudar o mundo, discutíamos filmes do Igmar Bermann ou vigilávamos a noite do João Aveline preso no quartel militar da Luiz Afonso, não se desprezava um bom baseado burguês - especialmente aquele do tipo cabeça de negro, do insólito verão da lata.


Acorria também ao apartamento do edifício do terceiro andar da João Pessoa. localizado praticamente ao lado do prédio onde hoje é o diretório municipal do PT, naturalmente um pessoal ligado à redação de Zero Hora, como a Jussarinha Porto, fotógrafa recém chegada de Pelotas, e a magra Marilena Marascha, natural de Tapera, que virou psicóloga com clinica chique em Lyon, França.


O Delmar Marques aparecia com seu timbre, digamos, irado. E o Betão, na fauna toda que ele reunia para conversar, ouvir música e fumar, era de todos nós, de longe, o menos pirado.


5.


Divagava assim - sem ter certeza se lembrava tudo com correção - até que chegou à capela 7 o Zéantônio SSilva, permitindo que se resgatassem outras situações como idas à praia de Rondinha Velha no litoral norte do RS e os acampamentos que hoje seriam considerados "arriscados e selvagens" que fazíamos desbravando o litoral catarinense e mesmo incursões de barracas na serra gaúcha, onde o Juarez Fonseca acabou comprando sítio para deleite da, digamos, galera (!).  


Depois o Betão, já casado com a Côca (este apelido para a Noemy é um mistério para mim até hoje), comprou em súcia com a família da mulher uma casinha de praia em Figueirinha, na jurisdição de Arroio do Sal, e os veraneios ficaram mais calmos e familiares. (O Zé escreveu sobre isto no site da coletiva.net produzindo um belo texto, com memória e sensibilidade inusitadas).


6.


Então nos aparece no cemitério o professor da PUC e de todos nós, Marques Leonam, renovando episódios sobre o Betão e sobre a época do Betão, a nossa época.


Didático, o professor lista quatro, cinco motivos para inesquecer o Beto.


Primeiro, era um profissional imbatível.


Segundo, sempre foi extremamente bem humorado.


Terceiro, era um formador de equipes.


Quarto, era um líder que liderava com ternura.


Quinto, era um cara do qual ninguém tinha nada de ruim para falar.


Ave, mestre Leonam.


7.


Chega agora ao cemitério um piá (para nós), o desenhista Moa, e outro guri, o Silvio Ferreira, meninos que já conheceram o Betão nos anos 80, no Diário do Sul. Ali, a sabedoria do Hélio Gama descobriu qualidades que ainda não víamos no Betão. Convidado para editar um visionário suplemento de vídeo, chamado Expectador, antecipando a popularização dos aparelhos de reprodução de filmes, Betão mostrou especial capacitação para editar o caderno que virou sucesso do DS.


Vale lembrar, para a geração computadorizada e internetizada de hoje, que nestes primórdios ainda se batia teclado de máquinas de datilografia, na redação do DS, desconhecendo-se até os primeiros PCs.


As laudas - que era como se chamavam as folhas milimetradas onde escrevíamos, facilitando a vida dos diagramadores (os avós dos projetistas gráficos e designers de hoy) - eram tremendamente riscadas, emendadas, afixadas com remendos manuscritos até. Frequentemente, quando as laudas estavam muito rasuradas, o editor pedia que se escrevesse tudo de novo?mas, claro, na máquina de escrever. Ou seja, se era forçado a introduzir uma nova lauda virgem na máquina e se começava a teclar tudo de novo, palavra por palavra, do zero. E tinha, ainda, o copydesck, o redator que corrigia (ou piorava) a matéria do repórter, complicando ainda mais a árdua tarefa do jornalista de antanho.


Na Zero Hora, vi o Betão recolher do cesto do lixo matéria que copy impaciente jogara fora.


Vi o Betão desamassar cuidadosamente o papel, chamar o repórter que a escrevera e repassar todo o texto, conversando e corrigindo linha a linha.


Vi e até ajudei na tarefa. E bons repórteres que passaram por isto, sobrevivendo com esta ajuda extra, de solidariedade inacreditável nos dias atuais, estão aí para comprovar.


Os copys, não sei onde foram parar.


8.


Quando o Hélio Gama era secretário de Comunicação no governo estadual de Pedro Simon e viu que o Estado mantinha, desativada e inerte, a concessão de uma rádio FM, chamou o Betão e a Baiana Milanez para ressuscitarem a emissora, que logo virou sucesso de critica e público no último ponto do dial, 1120, a Cultura FM. Recentemente, incomodado com a idéia do atual governo terceirizar a rádio e a TVE para alguma Organização OCIP, o Betão disparou um texto pela internet, contando as dificuldades do início da Cultura e pedindo que se assinasse um abaixo-assinado para impedir a privatização do patrimônio público


Clamava assim, o Betão, em seu derradeiro recado: 


Amigos,


Recomendo este abaixo assinado. Tudo bem que a TVE permaneça atirada às traças, mas foi assim a vida toda  -  e ela nunca deixou de ser uma referência para a nossa vida cultural, um recanto onde muita gente encontrou o espaço alternativo que precisava quando lhe faltou apoio para iniciativas que não encontraram suporte nos meios de comunicação tradicionai $. Só estando lá dentro pra ver como isso funciona na prática. Dava um livro de barbaridades.


No dia em que a FM Cultura foi ao ar - por exemplo - tínhamos talvez pouco mais de cem discos de vinil próprios, resultado de uma verba que a Baiana e o Fedrizzi conseguiram não sei onde, e que escolhemos na Kings da Galeria Chaves. 120 LPs para uma progração segmentada em música popular, clássicos e jazz. Não lembro bem, acho que inicialmente eram 16 horas por dia no ar.


Mas a esses vinis juntamos outras centenas de discos que trouxemos de casa, e que tivemos a preocupação de identificar, um a um, para o dia em que pudéssemos levá-los de volta.


Era pura penúria, mas demos um jeito. Assim como a TV dava um jeito, inventando contorcionismos para obter recursos? Nós, da rádio, pedíamos aos nossos poucos ouvintes - na cara de pau mesmo - que nos dessem discos. Velhos, novos, tanto fazia o estado, tanto fazia o gênero - e ganhamos muitas obras ótimas, outras até bem raras.. Coisas estranhas também.


A TV, pedindo não discos, mas apoios culturais, igualmente foi sobrevivendo ao longo dos anos.


E os equipamentos danificados formavam pilhas. E entre os entulhos já acumulados de anos anteriores as caranguejeiras sempre puderam cuidar para que seus filhotes crescessem fortes naquele recanto do morro.


Muita gente, milhares de pessoas, de todo o Rio Grande, contribuíram para que essas duas emissoras permanecessem até hoje com seus tijolos em pé ? para orgulho do Palácio Piratini, gastando o mínimo, orgulho barato.


Melhor do que vender é mantê-las no ar, do jeito que der, enquanto as antenas estiverem em pé.


Um dia alguém lhes dará devido valor.


Beto Andreatta  


*** 


9.


Ficamos ali em um velório sem corpo, relembrando causos tão bons que nos fizeram sorrir em meio à tristeza e à dor da perda. Não tenho dúvidas que o Betão bem que gostaria de estar ali, naquela hora rumo a madrugada, papeando com a gente. Proseando sobre o velho Abreu e na dona Ema, pais do Santiago, do Beto, do Luiz, do Odilon, sogro da Olga e da Rosina Duarte que, em Bagé devia estar aflita para voltar, com certeza abalada com a morte do amigaço, também da Cristina Pozzobon, da Marô Silva, da Clarinha Clock, entre os afetos feminimos que o Betão sempre cativava.


"No meu enterrro, em que todos vocês certamente estarão, não quero este clima de irreverência, sorrisos, pouca tristeza. Quero muito choro e muita tristeza", disse o Leonam, com as sobrancelhas severamente erguidas para tentar incutir um ar sério à fisionomia galhofeira.


Logo, o Wagner chegou. E chegou um outro amigo - com a esposa, presume-se - que se apresentou formal como ?amigo do Humberto? e nos notificou que o corpo deveria chegar por volta da meia-noite à capela.


O Wagner ligou para a ZH que ligou para o IML e se descobriu que o Betão já tinha saído do morgue oficial para uma funerária. Mas só chegaria mesmo à capela bem depois da meia noite, já na segunda-feira, dia 5.


De paletó, mas sem gravata, como gostava de se vestir, desapegado das formalidades.


***


Mais tarde, no meio daquela manhã, o Emanuel Gomes de Matos lembrava uma renhida discussão para decidir uma matéria do Jornal do Grêmio, após uma derrota gremista em um Grenal. Como ele contou no texto  publicado na Coletiva.net, os três repórteres e editores gremistas se engalfinhavam durante toda uma tarde para decidir se admitiam claramente a derrota ou se a desprezavam, minimizando o efeito da perda por 2 a 1, para animar a torcida tricolor.


Emanuel e eu, creio, defendíamos a tese de que o Jornal do Grêmio, voltado para (e pago pela) massa gremista, não podia valorizar nem mesmo admitir a derrota.


Betão defendia o puro jornalismo: "Temos, sim, que aceitar o fato de que perdemos mesmo".


- Lembra como saímos daquele dilema? - indagava o Emanuel, uns 30 anos depois, no cemitério.


Eu, que nem lembrava de tal embate, fui conferir nos arquivos. Está na edição número 6, de setembro de 1976. Na página 7, o jornal do tricolor reconhece a cruel realidade: Grêmio 1, Inter 3.


O Betão, claro, havia vencido.


10.


O Betão era um belo repórter. Bons exemplos do trabalho dele podem ser confirmados no livro "A Guerra dos Bugres- A Saga da Nação Kaigangue" (Editora Tchê, 1986) ou na coleção do jornal O Interior, nas matérias que ele fez no Mato Grosso e, mais adiante, na premiada série de "O Grito do Campo", do mesmo aguerrido jornal de Carazinho que hoje virou pálido relise da Ocergs.


Mas deixou a carreira "reporteira" relativamente cedo, porque se impuseram outras qualidades, mais raras entre os jovens jornalistas, como a responsabilidade, a liderança, a visão de grupo,  que determinaram que ascendesse à condição de chefia e editor confirmados pela perspicácia de Otilia Riet, editora de Geral de ZH, que vislumbrou cedo o diferencial, guindando-o a sua sub-chefia; do Osmar Trindade e Elmar Bones no Coojornal, do Tunico Kanitz na revista Agricultura & Cooperativismo, do Emanuel no jornal do Grêmio e do Hélio Gama no Diário do Sul.


Se o jornalismo gaúcho perdeu prematuramente um repórter, ganhou um chefe de equipe admirável e um editor muito competente. Além da capacitação nata para defender uma posição firme em nome de um grupo, Beto era respeitado porque tinha amassado o barro - como se dizia naqueles tempos - para se conferir respeitabilidade a um repórter de fé, que já tinha trocado a redação pela busca de dados "a campo" ou "in loco".


Mais tarde, depois que findou o sonho de 22 meses do Diário do Sul, em 1988, ele dedicaria-se ao jornalismo empresarial e, me contaram, trataria de comprar um sitio onde criava coelhos. Mas tínhamos nos afastado. E eu "só ouvia dizer", como ele progredia.


Até que tantos anos depois, o Zéantônio me liga, na tarde dominical, falando baixo e com cuidado?e eu imaginando que ele estivesse, como sempre, voltado para o tema de algum livro?Vai convidar para algum lançamento, algum encontro na feira da livro. no bar da praça.


Era, de fato, convite para um encontro. Derradeiro


Epílogo


Naquele final de manhã abafada do dia 05/11/2007, ao conduzir o caixão no lento e infindável percurso, torneado pelos corredores do cemitério, soterrado pelos sentimentos, lembranças e saudades, mal me dei conta da peça que o destino nos pregava, com irônia e crueldade.


De novo eu ajudava o Betão a ocupar uma morada: a última, no nicho 334126, na parede florida do João XXIII.

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