Vozes do além

Por Marino Boeira

Aqueles velhos amigos que se reuniam no Bar do Alcides todas as quintas feiras, a partir das 18h, tinham muitas coisas em comum: todos se consideravam intelectuais, o que significava que nenhum deles pegara no pesado alguma vez na vida; todos eram de esquerda, o que significava que votavam sempre, em qualquer eleição, no candidato mais à esquerda possível, embora um deles, o Marcos, tenha confessado que na sua juventude votara no Jânio Quadros e, finalmente, todos se diziam ateus, embora quase todos tivessem casado na igreja e um deles, o Cardoso, fizera aquela frase cheia de dúvidas que, até hoje, é sempre lembrada quando o assunto religião vem à baile: acreditar em Deus eu não acredito, mas tem algumas coisas difíceis de entender, lá isso tem.

Esse introito todo serve para explicar a celeuma que causou a proposta feita pelo Costinha, numa quinta-feira, 15 de agosto, um dia de muita chuva e frio, de que fosse tomada uma decisão do grupo sobre "como seria a outra vida".

Diga-se de passagem, que num primeiro momento, houve uma revolta geral e o Andrada, sempre o mais explosivo de todos, queria que o Costinha fosse expulso do grupo, depois que ele confirmou que sua proposta não era uma brincadeira.

O Chaves, que era considerado um grande conciliador e que por isso mesmo, em ocasiões mais tensas da vida nacional, chegou a ser apontado como um infiltrado de direita, fez mais uma vez jus à sua fama e conseguiu apaziguar o grupo.

- Vamos ouvir, pessoal, a proposta do Costinha.

Contra vontade do Andrada, deram a palavra ao Costinha.

- Minha proposta é simples: quem morrer primeiro, volta na próxima reunião do grupo para contar como é a vida no além.

A reunião daquela quinta-feira, 15 de agosto, terminou ali mesmo. O Andrada jogou a cadeira longe, se levantou e foi embora. Os demais ficaram solidários com ele e também se levantaram.

Só ficaram na mesa, o Chaves e o Costinha, que tentava explicar que era só uma proposta e que não queria dividir o grupo.

Chaves, sempre conciliador, disse que não era a primeira vez que uma reunião terminava desse jeito e lembrou aquela vez em que o grupo se dividiu em dois, um que queria votar na Luciana e outro no Raul. Uma semana depois, estavam todos juntos novamente, defendendo o voto em branco contra o Marchezan.

- Pode deixar. Dou uns telefonemas durante a semana e na próxima quinta-feira estaremos todos juntos novamente aqui no Bar do Alcides.

Só que, dois dias depois, um sábado, dia 17 de agosto, também um dia de frio e chuva, o Costinha morreu de repente, vítima de um enfarte fulminante.

Ninguém foi no enterro, porque como dizia o Cardoso, depois de certa idade, ir a enterro é chamar a morte e a reunião da quinta-feira ficou 'sob judice', como gostava de falar o Luís Adauto, o advogado do grupo.

Depois de muitos telefonemas, Chaves conseguiu convencer a todos que a reunião do dia 24 deveria acontecer, como de costume, no Bar do Alcides.

O Andrada foi o último a concordar com o encontro e impôs uma condição: se alguém lembrar aquela proposta do Costinha, levanto e caio fora.

Na quinta-feira, dia 24, estavam todos novamente reunidos no Bar do Alcides. Mais uma vez, chovia e fazia frio. A exigência do Andrada criara um constrangimento, até que o Marcos perguntou se pela combinação não se podia falar no nome do Costinha ou se a proibição era apenas sobre a proposta dele.

O Arnaldo lembrou que o lema do grupo, tomado do movimento de 1968 na França, era de que é proibido proibir. Foi o sinal para a volta do velho clima de vale tudo com todo mundo falando ao mesmo tempo e poucos ouvindo. Até mesmo o Andrada lembrou uma história do Costinha, sobre a sua incontinência urinária numa recepção no Palácio Piratini.

- O Costinha mijou nas calças na frente do Brizola e todo mundo dizia que fora por causa da emoção de apertar a mão do seu líder.

Por volta da meia-noite, depois da quarta ou quinta saideira, o Carnaúba, sempre o mais metido a engraçado do grupo, começou o seu número tradicional de imitações, que ia do Brizola ao Lula, passando pelo Galvão Bueno e o Sílvio Santos e logo nessa noite, incluiu uma fala do Costinha, recebida com gargalhadas, inclusive pelo Andrade.

- Quem morrer primeiro, volta na primeira reunião do grupo para dizer como é a vida no além.

Nesse preciso momento, um raio caiu sobre o bar, o deixando tudo às escuras.

Foi quando se ouviu a voz do Costinha.

- Isso aqui é uma merda muito pior do que quando estava vivo.

A luz voltou no minuto seguinte, mostrando as caras espantadas de todos e a imediata reação de apontar para o Carnaúba.

- Piada muito sem graça, Carnaúba, disseram quase em uníssono os participantes da mesa.

O Carnaúba, pálido a ponto de parecer que estava prestes a desmaiar jurou e jura até hoje, mesmo que não frequente mais o grupo, de onde foi expulso, que não foi ele quem falou.

Autor
Formado em História pela Universidade Federal do Rio Grande do Sul (Ufrgs), foi jornalista nos veículos Última Hora, Revista Manchete, Jornal do Comércio e TV Piratini. Como publicitário, atuou nas agências Standard, Marca, Módulo, MPM e Símbolo. Acumula ainda experiência como professor universitário na área de Comunicação na Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS) e na Universidade do Vale do Rio do Sinos (Unisinos). É autor dos livros 'Raul', 'Crime na Madrugada', 'De Quatro', 'Tudo que Você NÃO Deve Fazer para Ganhar Dinheiro na Propaganda', 'Tudo Começou em 1964', 'Brizola e Eu' e 'Aconteceu em...', que traz crônicas de viagens, publicadas originalmente em Coletiva.net. E-mail para contato: [email protected]

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