A lição de Pelotas

Por Roger Lerina

No começo de 2018, escrevi aqui sobre a alegria e o prazer de acompanhar a abertura do Festival Internacional Sesc de Música, em Pelotas. Uma experiência enriquecedora, tanto do ponto de vista cultural quanto social, que pude bisar neste ano - desta vez, testemunhando o encerramento do evento, na última sexta-feira, 25. Considerado um dos maiores encontros de música de concerto da América Latina, o festival em sua nona edição reuniu durante 12 dias professores de 14 nacionalidades, que ministraram de 22 cursos dos mais variados instrumentos, além de canto, choro e composição. Foram 60 espetáculos gratuitos, que ocuparam espaços como o Theatro Guarany e o Conservatório de Música - incluindo a série Festivais na Comunidade, com mais de 20 apresentações nos mais variados espaços da cidade, como hospitais, asilos, igrejas e até zona rural. Outra novidade deste ano foi a implementação do Curso de Choro, dando mais espaço para o aprendizado de violão, acordeom, bandolim e cavaquinho, além dos sopros e percussão.

O fecho da edição de 2019 foi um belo concerto ao ar livre, já tradicional do festival, reunindo cerca de cinco mil pessoas no Largo do Mercado Público, em uma agradável noite que trouxe frescor e leveza ao final de um dia quente em Pelotas. A apresentação de despedida do encontro que reuniu cerca de 400 estudantes de diversos Estados brasileiros e de países vizinhos teve regência do maestro Evandro Matté, conduzindo a Orquestra Acadêmica, formada por alunos, mais as participações especiais do grupo vocal Voice In e do violinista chinês Yang Liu. O concerto - prestigiado por autoridades municipais, estaduais e federais - contou ainda com um anúncio aguardado com ansiedade por todos: Luiz Carlos Bohn, presidente do Sistema Fecomércio-RS/Sesc/Senac, confirmou para janeiro de 2020 a realização da 10ª edição do festival.

A continuidade da iniciativa estava comprometida desde que Paulo Guedes, então futuro ministro da Economia, declarou no final do ano passado que pretendia "meter a faca no Sistema S", cortando substancialmente os repasses do governo federal a entidades ligadas à indústria e ao comércio como Sesc, Senai e Senac - responsáveis pela formação técnica e profissional de jovens dos mais variados lugares do Brasil, além de promoverem inúmeras atividades de cultura, arte, lazer, educação e esporte voltadas a comunidades de todo o País.

Curiosamente, na plateia estava Henrique Pires, secretário especial da Cultura do governo Bolsonaro - que extinguiu o Ministério da Cultura, reduzindo-o a pasta subordinada ao Ministério da Cidadania. Gaúcho de Pelotas, Pires dirigiu fundações culturais como o Instituto João Simões Lopes Neto, foi coordenador de feiras de livros e trabalhou pela preservação de sítios históricos no Rio Grande do Sul, entre outras atividades na área - currículo que o credencia a lutar pela sobrevivência da arte e da cultura no seio de uma administração federal que parece dedicar apenas indiferença e mesmo desprezo a esses temas.

Em tempos de ameaças institucionais à cultura e à arte, ao conhecimento e à liberdade de expressão, o concerto de fechamento do festival revestiu-se de um viés de resistência extremamente oportuno - não apenas pelos méritos de congregar a comunidade em torno de uma celebração musical pública e gratuita, mas também por conta das manifestações oficiais que antecederam a apresentação.

Fazendo coro e amplificando o tom da fala da prefeita Paula Mascarenhas, o governador Eduardo Leite fez uma franca manifestação em favor da relevância da cultura - que merece ser endossada, replicada e eventualmente cobrada dele mais adiante por todos os gaúchos. "Considero que cultura é de suma importância a um povo, não só pelo lazer cultural, mas pelo impacto econômico e social. Por meio da cultura, acessamos a nova forma de economia, a economia criativa, alcançamos outros mercados, crescemos", disse ao microfone o político pelotense, depois de elogiar o Sesc/RS, que "faz um excelente investimento em cultura". Leite compareceu ao evento acompanhado de Beatriz Araujo - também uma pelotense -, titular da Secretaria de Estado da Cultura, pasta que foi recriada pelo atual governo depois de ter sido fundida na gestão passada com Turismo, Esporte e Lazer.

O discurso não soou como balela. Respaldando o depoimento anterior da prefeita de Pelotas, que destacou a movimentação no comércio trazida pelo festival em uma época na qual tradicionalmente a cidade ficava parada, o governador foi enfático ao destacar a relação virtuosa entre cultura e economia - uma linha de argumentação capaz de seduzir até aquelas almas insensíveis ao apelo humanista, pedagógico e civil intrínseco às artes. O momento é de união na trincheira iluminista se quisermos sobreviver ao obscurantismo intelectual e comportamental que vem ganhando cada vez mais espaço simbólico e real na vida do País. Nesse panorama triste, tacanho e estéril, iniciativas como o Festival Internacional Sesc de Música se contrapõem como potentes catalisadores capazes de impactar positivamente a cultura, a educação, a cidadania e, sem dúvida alguma, a economia da sociedade. A lição de Pelotas merece ser copiada.

Autor
Jornalista e crítico de cinema, integrante da Associação Brasileira de Críticos de Cinema (Abraccine). Editou de 1999 a 2017 a coluna Contracapa (artes, cultura e entretenimento), publicada no Segundo Caderno do jornal Zero Hora. Neste período, também atuou como repórter cultural do caderno de variedades de ZH. Apresentou o Programa do Roger na TVCOM entre 2011 e 2015 e é é autor do livro "Mauro Soares - A Luz no Protagonista" (2015), volume da coleção Gaúchos em Cena, publicada pelo festival Porto Alegre Em Cena. Foi corroteirista da minissérie "Tá no Sangue - Os Fagundes", veiculada pela RBS TV em 2016. Atua como repórter e crítico de cinema no Canal Brasil.

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