Le Complet
Por José Antônio Moraes de Oliveira
"Comida para mim deve
ser sempre uma aventura."
(Anthony Bourdain)
Com o celebrado mau humor parisiense, o piloto nos informa que Orly e Charles De Gaulle estão fechados, devido à greve de pilotos da Air France. E depois de uma pausa dramática, diz que vamos fazer uma escala técnica em Marseille. Uma onda de oohs! e aahs! de descontentamento percorre o avião. Parece que ninguém está feliz com a perspectiva de passar algumas horas na bela cidade mediterrânea. Esfrego as mãos, discretamente. É divertido sair do roteiro.
***
A comissária avisa que o TGV Méditerranée ligando Marseille a Paris, sairá em uma hora, mas que o ônibus de conexão vai atrasar duas horas. Neste ponto, o alemão ao lado reclama que precisa estar em Paris naquele mesmo dia, mostrando um claro desdém pela ineficiência gaulesa:
"- Estas coisas nunca aconteceriam em meu país..."
Na janela, emerge o recorte azulado do Luberon. Ali estão escondidas nas encostas da grande montanha, algumas das mais belas vilas da França. O Airbus nivela e sem pressa parisiense, pousa em Marseille. Estamos na Provence. No balcão da Air France, mais notícias - ninguém sabe dizer quanto tempo vai durar a greve. No entanto, em algumas horas, serão anunciadas as conexões disponíveis para Paris. Ouve-se mais oohs! e aahs!
No minuto seguinte, o quadro de avisos mostra todos os voos marcados com o vago comentário En retard. O alemão passa correndo, em direção à saída dizendo que vai tentar o TGV. Os demais passageiros, conformados, se acomodam nas poltronas do saguão, sabendo que a espera será longa.
Sigo o rastro do alemão e vou em direção à saída.
Na rua, a Provence me recebe com aquela luminosidade que seduziu Degas e Cézanne. Uma brisa gentil ondula as palmeiras da avenida, carregando a maresia mediterrânea - um irrecusável convite para uma fuga fora do roteiro.
***
O mapa da Provence mostra que Ménerbes e Bonnieux estão a pouco mais de uma hora de distância. Valeriam a pena? Em um ano na Provença, o inglês Peter Mayle garante que sim. Pesco o livro na maleta de mão e busco o capítulo onde ele lembra a primeira refeição na Provença, quando aqui chegou no final dos anos 1980. Foi em um despretensioso restaurante no caminho para Bonnieux, onde ele foi apresentado a uma crepitante Casserole de Lagostins, refogados na manteiga, alho e tomates, escoltada por uma baguete crocante, servida por uma niçoise de olhos azuis como o céu do Mediterrâneo.
A conversação com o motorista do táxi não vai bem - o sotaque provençal tem pouco do francês que aprendemos na escola. Mas aos poucos, a relação melhora quando digo que estou à procura um restaurante de frutos do mar no caminho de Bonnieux. Ele resmunga um Beh oui, me encara pelo retrovisor e diz que os melhores frutos do mar estão ali mesmo na cidade, na Vieille Ville. E antes que eu diga alguma coisa, faz uma brusca conversão em U e mergulha nas ruas estreitas que levam ao porto. A menção de frutos do mar deve ter mexido com sua alma provençal - ou teria sido o pour-boire que vai ganhar do restaurante?
Enquanto manobra o Renault com uma mão e gesticula com a outra, diz que estamos no bairro dos melhores restaurantes de Marseille. E vai dizendo o que devo pedir: Na entrada, a Salade Niçoise, que deve ser seguida da Tart Pissaladières, prato que tem cebolas, anchovas e caillettes, as pequenas e suculentas azeitonas pretas da Provença. Bien sûr, tudo isso antes do prato principal, o Plateau Complet, ou seja, uma montanha de frutos do mar.
O Renault chega ao restaurante. A fachada de madeira azulada do Entre Terre er Mer está toda descascada, pedindo pintura. São duas casas, uma em cada lado da rua. Enquanto confere a gorgeta, o motorista indica com o queixo, a casa mais castigada, onde um velho letreiro informa que ali funciona Au Vieux Panier.
Não há ninguém à porta e procuro por uma mesa no pequeno salão. São poucas mesas, dez ou doze, cada uma com cadeiras completamente desparelhadas. Mas as toalhas e a louçaria são imaculadamente brancas. Não há cardápios nem vasos de flores nas mesas.
Um bom lugar, Peter Mayle...
Ao notar minha hesitação, o gordo da mesa ao lado aponta a lousa na parede. Desisto da caligrafia indecifrável, quando chegam da cozinha aromas de peixes refogados em manteiga.
O garçom de bigodes à kaiser me espera com duas carafes de rouge e blanc. Qual a preferência de Monsieur, pergunta com o olhar. Indico o blanc mas ele quer saber se quero o Plateau Complet ou o Plateau Demi.
Olho firme para ele e tomo uma decisão irresponsável:
"Le Complet, s'il vous plaît"
***
O vinho branco não resiste aos 30 minutos de espera, mesmo com o apoio da terrina de foie gras e torradas salteadas em óleo virgem. A porta da cozinha se abre e o Plateau Complet aterrisa na mesa. Quase não sobra espaço para os talheres e para outra carrafe de blanc.
São duas bandejas, a maior com uma lagosta cortada ao meio e cercada por uma brigada de camarões rosa e cinzentos. Na outra, um arranjo de ostras, moluscos, ouriços-do-mar, mexilhões, lagostins, búzios e limões picados. Três ou quatro tijelinhas com aioli, vinagrete, mostarda de Dijon, maionaise de ervas, pimenta rosa...
Por onde começar? Pelas ostras, com gotas de limão? Ou que tal a lagosta com maionese de ervas? Olho de lado para os demais comensais em busca de exemplo. Inútil - eles estão absorvidos em vários estágios de devorar, em silêncio as criaturas do mar, sem nenhuma ordem estabelecida.
Depois de um largo gole de blanc, começo a faina, lembrando uma frase com a qual o escritor inglês descreve as refeições na Provence:
"Para os provençais não existe um espaço
de tempo separando o almoço do jantar"
***