Para que não se esqueça, para que nunca mais aconteça

Por Márcia Martins

É do político e sociólogo americano Daniel Patrick Moyniham a frase que melhor descreve a ideia estapafúrdia do presidente Jair Bolsonaro de comemorar o golpe de 1964. Moyniham, eleito para o Senado dos Estados Unidos para Nova Iorque pela primeira vez em 1976 e, posteriormente, três vezes reeleito, disse: "Todos têm direito à própria opinião, mas não a seus próprios fatos". Ao dizer mais uma das suas inúmeras bobagens ou ignorâncias, o presidente que administra o Brasil desde 1° de janeiro deste ano e ainda não apresentou nada de projeto para qualquer área, inclusive as mais vitais, como educação, segurança e saúde, foi cruel, inoportuno e demonstrou burrice e má fé com um período da história do País dos mais violentos e sanguinários.

Não há nada a comemorar, senhor presidente. E o senhor pode, sim, ter a sua opinião, mas não há como negar os fatos. Pois, há 55 anos, em 31 de março de 1964, o Brasil mergulhou num tempo de profunda escuridão, de represálias, de perseguições a todos que ousaram discordar do autoritarismo militar, de sangue espalhado nas casas, campos, construções e universidades, de mortes, de cerceamento a todo tipo de liberdade, de censura e de famílias entristecidas e dilaceradas porque jamais tiveram o corpo de seus parentes para enterrar. Foram 21 anos de medo, de retrocesso, de repressão, de lágrimas derramadas, de estudantes e líderes sindicais presos e de muita dor no solo da mãe gentil.

O fato, senhor presidente, é que este período de 21 anos, que não pode ganhar a alcunha de revolução e sim deve ser chamado de golpe ou ditadura militar, assassinou 423 pessoas, torturou mais de 20 mil e matou oito mil indígenas atingidos pelas frentes de expansão agropecuárias e por empresas a serviço do Estado. Estes números, que não merecem nenhum tipo de comemoração, não são um exercício de opinião minha ou de qualquer pessoa de pensamento alinhado mais à esquerda. São dados (fatos) que constam do relatório da Comissão Nacional da Verdade (CNV) e exigiram dois anos e sete meses de trabalho, condensados em mais de quatro mil páginas.

Os relatos agoniantes de torturados que sobreviveram às barbáries e atrocidades cometidas são mais do que opiniões. Tratam-se de fatos documentados e que até hoje atormentam as memórias destes sobreviventes. Os gemidos de mulheres grávidas que não tinham nem a sua condição de gestantes respeitada e apanhavam dos torturadores, entre eles Carlos Alberto Brilhante Ustra, coronel do Exército brasileiro e um dos ídolos do presidente Jair Bolsonaro, são mais do que opiniões. Tratam-se de fatos que ainda, em pleno 2019, machucam as lembranças de um período (a gestação) que deveria ser marcado pela ternura e jamais pela dor.  Os desaparecidos, os mortos, os que nunca foram enterrados, os que precisaram usar codinomes para fugir da censura são fatos.

E, ao contrário do que alguns desmiolados preferem dizer, os anos de chumbo não podem ser descritos somente pelo número de mortos, torturados, sobreviventes ou perseguidos. Foi um tempo de estagnação econômica. Se ocorreu algum crescimento, ele foi feito à custa dos salários e das condições de vida dos trabalhadores. A dívida pública pulou de 15,7% do PIB em 1964 para 54% ao final do regime militar, em 1984, e uma inflação de 223%. Os problemas (e não "probleminhas" como disse Bolsonaro) eram tão graves que, quatro anos depois do fim da ditadura, a inflação alcançou a marca de 1.782%.

Será que existe motivo para comemorar? O salário mínimo equivalia, em poder de compra atual, a R$ 1.232 em março de 1964. Caiu para R$ 719 em janeiro de 1967, para R$ 682 em abril de 1969, para R$ 661 em abril de 1974 e R$ 563 em março de 1983. Alguém comemora esta imensa redução no poder de compra? A dívida externa, de US$ 3,6 bilhões em 1964, e passou para US$ 93 bilhões em 1984 deve ser comemorada?

Por isso, todos os atos que ocorreram no domingo, 31 de março, em várias capitais do País reforçam que os 21 anos sugeridos pelo presidente não são dignos de comemoração. Todos eles lembraram os mortos, as vítimas, os desaparecidos, os perseguidos, os exilados, os que nunca mais foram encontrados, os que nunca puderam ser enterrados. É preciso sim, senhor presidente, gritar aos quatro cantos que se viveu, a partir de 31 de março de 1964, durante 21 anos, um golpe militar, uma ditadura, um regime de exceção. E é preciso sim, senhor presidente, que nunca ninguém esqueça tais atrocidades. Para que nunca mais aconteça. Ditadura nunca mais. Ditadura não se comemora.

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

Comentários