Vento sagrado

Por José Antônio Moraes de Oliveira

As más notícias correm sempre rápido. O 'Le Provençale' alertava que o centenário desfile dos cavaleiros da Camargue, em Arles, poderia ser cancelado, pela ameaça da chegada do Mistral, o mais temido de todos os ventos que sopram do Mediterrâneo. É chamado de 'vento sagrado', lembrado pelas lendas e mistérios, que carrega desde tempos imemoriais, assombrando homens e devastando colheitas.

***

No entanto, a tradicional feira de flores de Aix-en-Provence, estava aberta e funcionando, sob o incrível céu azul-cobalto sem nuvens da Provença. Um prenúncio otimista que o anunciado festival de vinhos de Chateauneuf-de-Pape iria ocorrer normalmente - como nos últimos 50 ou 60 anos.

Na praça e no pequeno bistrô, também não se notava sinais de alarme pela catástrofe iminente. Mesmo assim, interroguei o velho garçom que servia minha dose de Pernod, ouvindo uma resposta típica dos provençais, claro que acompanhada de resmungos e o subir de ombros:

"- Nunca se sabe do Mistral, pode ser que apareça,

mas também pode ser que não."

***

Eu havia lido em algum lugar sobre os lendários ventos que sopram do Mediterrâneo. Como o Sirocco, que assola o sul da Europa no verão, com areias quentes do Norte da África. Ou o mais assustador, o Mistral, que os provençais tratam de Sâcre Vent. Ele nasce nas vastidões do Norte, desce pela Europa Central, desemboca no vale do Ródano, e chega ao Sul com a força de quase 200 quilômetros por hora.

Quando sopra no outono, o Mistral é capaz de derrubar as temperaturas de 25 graus positivos para 10 negativos. As casas fecham as portas, batem as janelas e os camponeses cobrem os vinhedos. Na Camargue, correm lendas sobre o Sâcre Vent, mas levando-se em conta a fama local em exagerar em tudo, fica difícil acreditar em porcos voando sobre o Luberon ou em noivas grávidas parindo antes dos nove meses.

***

Mas percebo que o velho garçom deve estar afeito aos imprevistos da vida, pois procura me tranquilizar, quando eu olho para o céu com ar preocupado. Cofiando os bigodes a la Asterix, conversa sobre vinhos, falando que a safra de rosées promete ser excepcional. Mas, quando quero saber do plat du jour, dá de ombros e aponta para a porta da cozinha.

Curioso, mudo de cadeira e vislumbro, pela porta aberta da cozinha uma cena animadora para um viajante faminto - o patron manuseia com habilidade uma grande caçarola de cobre, de onde chegam sons e aromas de um refogado de alho, cebolas e orégano em óleo virgem.

Os longos ciprestes ondulam com a brisa que sopra do mar, mas não há sinal do Mistral. É quase meio-dia e o pequeno bistrô vai ficando lotado, com clientes com jeito de habituais. Eles atam grandes guardanapos ao pescoço e mastigam pedaços de baguete.           

O velho garçom volta ao salão, agora empurrando um barulhento carrinho com garrafas de vinho rosé empilhadas em uma cama de gelo. As garrafas não têm rótulos, apenas uma cinta de papel ao redor dos gargalos, com os nomes da uva e produtor. É o chamado vin de garage, de produção limitada e que raramente viaja, quase que totalmente para consumo local.

Copos cheios, alguns minutos se passam e um volumoso chef emerge da cozinha com duas caçarolas fumegantes, o que provoca comentários que parecem uma torcida saudando o time que entra em campo.

As primeiras garfadas são acompanhadas por resmungos e movimentos de cabeça, demonstrando unanimidade na aprovação à misteriosa alquimia de moluscos, sardinhas, lagostins, robalo e pescada vermelha.

Ninguém perde tempo em conversas, apenas se ouve os sons dos talheres, pratos e copos, o que faz do pequeno bistrô um refúgio de prazeres e alegrias do corpo e da alma. No carrinho as garrafas de vinho se esvaziam uma após outra, mas o velho garçom retorna da cozinha com mais garrafas, estas com colorações que vão do dourado ao palha pálido. Examino a que me coube - é um blanc de blancs, bem jovem produzido aqui perto, nos Alpes da Provença. A tarde escorre suavemente e após a última garrafa, saio para a rua. Os ventos haviam cessado e se podia sentir o perfume dos campos de lavanda. Sobre o mar e no céu, nenhum sinal do Mistral.

O velho garçom está à porta, esperando pelo pour boire. Quando pergunto sobre o vento que não veio, solta um típico 'Beh', acompanhado de mãos no ar e movimento de ombros, confirmando a sabedoria provençal:

"Não se sabe, pode ser que sim, pode ser que não."

***

Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

Comentários