Respeitável público

Na terça-feira, 14 de junho, com o fone no ouvido acompanhando a transmissão do depoimento do nobre presidente do PTB, Roberto Jefferson no Conselho …

Na terça-feira, 14 de junho, com o fone no ouvido acompanhando a transmissão do depoimento do nobre presidente do PTB, Roberto Jefferson no Conselho de Ética da Câmara, em Brasília, me toquei para fazer a pauta de uma visita da Câmara Municipal aos índios caingangues que ocuparam o Morro do Osso há mais de um ano. Dois pensamentos me invadiram: "legítimo programa de índio", e "melhor do que estar em Brasília". A visita demorou demais, me envolvi com uma estória arrepiante da Xamã Lourdes, uma caingangue que recuperou seus poderes de falar com os antepassados ao chegar ao Morro do Osso. Dia encerrado.



Momento de chegar em casa e ouvir como foi a escola da minha filha Gabriela, conferir os bilhetes dos professores e os temas. É normal que ela me espere assistindo desenhos ou então fazendo mais um de seus mirabolantes projetos para o colégio no computador. Ao abrir a porta, me assustei com a gritaria. Gabriela sentada no sofá, acompanhava pedaços do depoimento de Vossa Excelência, deputado Roberto Jefferson. Ao manifestar minha estranheza, ela rebateu: "mãe, tá uma baixaria, um chamou um de mulherengo, outro disse que aprendeu a roubar com o pai".


Para disfarçar, chamei a cidadã de quase 11 anos para conversar sobre amenidades e desviar a sua atenção do caso Jefferson, seus quilos e neurônios a menos. Afinal, embora viva política e jornalismo desde quando estava no meu ventre, vamos combinar que ninguém merece estar neste picadeiro. Definição perfeita. Aquilo estava parecendo um circo. De chicote e cara feia domador fica mais forte, meia volta, volta e meia, meia vida, meia morte, terminando seu batente de repente a fera some, domador que era valente noutras feras se consome.


Na quarta-feira, 15 de junho, cheguei na redação preparada para o Morro do Osso (O Retorno), brincadeira que faço com pautas que sempre voltam. Da chefia de reportagem, recebo a primeira pauta da tarde: acompanhar a assinatura de um termo de adesão de um programa de reaproveitamento alimentar do Governo do Estado que seria firmado no Circo Beto Carreiro. Sem muita idéia do que se tratava, fomos até o local, e eu pensando em silêncio: "Depois de um dia de índio, vou fazer uma assinatura estranha num circo".


A chegada mostrou que seria mais uma pauta inesquecível. Uma fila imensa de milhares e milhares de crianças aguardava para entrar no mundo mágico do circo. Alguns deixavam sair faíscas de excitação de seus olhinhos. Outros mais preocupados com o kit lanche que o programa "Tá no Prato", ao completar dois anos, distribuía ao respeitável público. Os meninos mais "afobados" queriam saber quando iria começar a brincadeira? E um mais "fofinho" puxava a professora da creche da periferia dizendo que não ia entrar no circo porque tinha bicho bravo.


Completamente animada com a pauta, me peguei cantarolando: "Corre, corre, minha gente, que é preciso ser esperto, quem quiser que vá na frente, vê melhor quem vê de perto". O celular toca e uma menina, aparentando uns sete anos de esperança, me encara enviesada. Olhei para ela e disse que iria colocar o celular no silencioso para não atrapalhar. A menina, identificada como sendo da creche Girassol, de olhos fundos morenos, tranças bem feitas e botas rosas, na cor da moda, suspira: "Nunca fui ao circo, quero ver o trapezista, seu salto lá no alto parece de brinquedo".


De um lugar privilegiado, olhei para arquibancadas lotadas com mais de três mil crianças e juntei alguns fragmentos na minha mente, como se fosse um quebra-cabeça. Minha filha recusou o convite para ir ao circo porque é tudo sempre a mesma coisa, e no fundo seu rosto coloria, ao acompanhar o depoimento do Roberto Jefferson, todo encanto do sorriso que seu povo não sorria. A Xamã Lourdes garantindo que não sai do Morro do Osso porque lá estão enterrados seus antepassados, e que essa dança não termina quando a noite for embora. E olhando no relógio, contabilizei que a menina da creche Girassol teria apenas uma hora de pura felicidade. A brincadeira ia terminar, morre o circo, renasce na lembrança, foi-se embora e eu não sou mais criança.

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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