Criança cidadã

Todo o dia eu faço tudo sempre igual. Acordo às 8h da manhã. Sorrio um sorriso pontual e beijo minha filha com a boca …

Todo o dia eu faço tudo sempre igual. Acordo às 8h da manhã. Sorrio um sorriso pontual e beijo minha filha com a boca de hortelã. Todo o dia eu digo a Gabriela para se cuidar e essas coisas que diz toda mãe preocupada, depois penso na vida para levar e me calo com a boca de feijão. Mentira. Mas, é claro que o Chico, ao compor "Cotidiano", pensava em pessoas de vida regrada. Seres normais que vivem aquele dia sempre igual, uma rotina milimetricamente traçada, que jamais se altera.


Nada na vida de um jornalista encaixa-se na música do bom moço de olhos verdes. Podemos ser acordados para cobrir uma ocupação de terra, ou um incêndio qualquer, ou quem sabe ao chegar em algum plantão de domingo de manhã um motim no presídio nos aguarda. O mesmo ocorre nas pautas diárias. Tanto pode estar reservado para o repórter umas pautas chatas de congressos, ou uma especial para o final de semana sobre o momento econômico ou uma de saúde para prevenir doenças no inverno.


Na semana passada, uma pauta à primeira vista parecia enfadonha. Cobrir um Congresso de Escolas Particulares, promovido pelo Sinepe/RS, cujo tema era "Novos tempos, velhas práticas. Até quando?", no dia em que uma das palestras abordaria a questão específica da relação escola versus família. No caminho da PUCRS, onde acontecia o evento, tentei olhar o lado positivo da pauta: estaria protegida da chuva que caía torrencialmente lá fora e refletiria um pouco sobre minhas atitudes como mãe de uma aluna de 5ª série do Ensino Fundamental.


Ao dirigir-me ao auditório onde estava acontecendo a palestra, percebi que não seria uma pauta qualquer e, longe de enfadonha, poderia ser inquietante. No caminho, uns cinco professores do colégio de Gabriela, sorrindo, me cumprimentaram pelo nome. Mais adiante, já assistindo à palestra, uma professora do colégio da minha filha encostou em mim e sussurrou: "Não te preocupa, nem todos concordam com o que ela fala", referindo-se à psicóloga que debatia. Na saída da palestra, mais uns cinco professores me concederam um aceno mais íntimo, pelo nome.


O fotógrafo comentou: "Como é que eles te conhecem, tu costuma fazer muita pauta de educação?". Não, respondi, tremendo nas bases. Eles me conhecem pelo nome porque eu vou muito ao colégio, reclamar, perguntar, questionar. Enfim, a legítima mãe chata, concluí ao final da palestra. Mas será que se preocupar tanto com a filha, temas, conhecer os professores, ler bilhetes e provas, é o bastante para me rotular de chata? Resolvi aprofundar a questão com a painelista fazendo uma entrevista sobre o assunto. Afinal, pensei, será que paguei mico ao levar uma latinha e ir torcer para a Gabriela no campeonato de handebol do colégio?


Não posso ser anormal nem tão superprotetora. Não nego, no entanto, que considero importante participar de todos os momentos da vida da minha filha. Mesmo sendo a única mãe da 5ª série do Ensino Fundamental que foi na etapa do campeonato torcer. Na entrevista com a psicóloga, as coisas começaram a ficar mais esclarecidas. O que ela ressaltou é que socialmente a função da escola é "arrancar os filhos das mães", permitindo que cresçam e possam desenvolver atributos como espírito coletivo, autonomia, iniciativa e independência. Com isso, segundo a psicóloga, estará sendo formado um cidadão responsável pela sua própria vida.


Confesso: fiquei mais aliviada. Com a certeza de que havia escolhido um colégio democrático e onde o aluno aprende a ser cidadão e a importância da palavra democracia, o que é reforçada na nossa convivência. E mais, ao ouvir da polêmica painelista que "se temos algum anseio de relações democráticas neste país, precisamos confiar que pais e escola estão cumprindo seus papéis e saber que, em Educação, o erro é fundamental ao bom aprendizado". Para educação, não existe uma fórmula mágica nem manual de instruções, quem dera se fosse assim. Mas é bom saber que, em educação, o erro também é importante.


Lembrei de uma frase dita pela diretora da creche da Gabriela na formatura que "educar é um ato fecundo de amar", e deixei o Congresso de Escolas Particulares menos pesada, mais confiante, afinal, estou ajudando a formar uma cidadã. De volta para o jornal, recordei que a minha pequena cidadã foi selecionada em um concurso de um jornal como o melhor texto sobre "Como o jovem pode ajudar a mudar a sociedade", na categoria de sua faixa etária, evidente. E uma das reflexões de Gabriela nesse texto é que cada um deve fazer a sua parte, isso já faz diferença.


Mais tarde, em casa, louca de vontade de abraçar e enroscar minha pequena grande cidadã em férias com o pai, fui ao seu quarto matar a saudade. Agarrei os bichos de pelúcia, olhei retratos, senti seu perfume, acariciei seu travesseiro. E resolvi "fazer a diferença". No dia seguinte, distribuí, ao longo da Avenida Ipiranga, alguns cadernos e livros que Gabriela não usava mais, para pequenos guris que se escondem embaixo da ponte porque ainda não conseguem entender o que é ser cidadão. Quem sabe um dia?

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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