Ninguém é uma ilha

O convite para o espetáculo "O Conto da Ilha Desconhecida", de José Saramago, trazia nas entrelinhas uma provocação para uma reflexão maior sobre os …

O convite para o espetáculo "O Conto da Ilha Desconhecida", de José Saramago, trazia nas entrelinhas uma provocação para uma reflexão maior sobre os sentimentos. "Uma fábula sobre o querer", com Gisela Habeyche, que fala de emoções com tanta expressão e como ninguém que eu conheço, e com quem tenho uma relação de amizade inexplicável.  Eu, que ao sair do plantão no início da tarde de sábado, após passear pelo Mercado Público e sentir seus cheiros e perfumes estranhos, pensava em ficar em casa ou talvez ir ao cinema, aceitei o desafio.


Com receio de remexer em gavetas do armário porque perdi as chaves (eu, tão organizada, não sei onde as coloquei), fui ver uma nova travessura teatral de Gisela na Usina do Gasômetro. Claro que não fui sozinha. Se é para refletir sobre sentimentos, meu porto seguro, minha mãe, precisa estar junto. E minha filha Gabriela foi cooptada para o passeio cultural. Enfim, as três mulheres, três gerações, dispostas a ouvir a história de um homem que acredita na existência de uma ilha desconhecida e está disposto a encontrá-la.


Não me perguntem onde é a ilha, caso contrário, já seria conhecida, lembra o texto de Saramago. Nem pensem que estou aproveitando o espaço para fazer propaganda para o monólogo da Gisela, porque era apresentação só naquele fim de semana. O cenário totalmente despojado, fundo preto, pequenos abajures de cores diferentes acesos pela Gisela nas divisões da peça. E mais do que nunca, me convenci de que nenhum homem é uma ilha, de que as lembranças jamais nos abandonam e que tudo é possível quando se acredita.


A própria sinopse da peça resumia que se tratava de um homem que não esmorece quando todos riem dele e dizem já não haver no mundo uma ilha desconhecida, de um homem que persiste em seu objetivo e torna-se capaz de atingi-lo, porque consegue compartilhá-lo com uma mulher que acredita nele. E a persistência do homem em conseguir um barco emprestado para sair mar adentro atrás da ilha desconhecida, ignorando o despeito de todos, me deixou pequenina de vergonha. Das vezes em que fugi dos meus planos, das janelas que fechei com medo do sol entrar e me incendiar, dos motivos que arrumei para desistir de tantos sonhos.


Ali estava a Gisela (Gigi Carabina, de uma brincadeira nossa), imensa e poderosa, fazendo com que eu me lembrasse de que não sou uma ilha, preciso de amparo, de um cais para aportar. Mas que também preciso deixar que os navios e as pequenas embarcações cheguem até onde estou. Despir-me do medo, da covardia, do temor de encontrar com o desconhecido, que, como diz Saramago, é tudo o que se apresenta a nossa frente. E se o desconhecido me cativar? E se eu conhecer o desconhecido? E se eu deixar de ser uma ilha? E se eu encontrar as chaves da gaveta?


Um aperto e um choro contido quando o texto lembra que gostar é, provavelmente, a melhor maneira de ter, e ter deve ser a pior maneira de gostar. Parece contraditório. Mas não é. É um círculo vicioso. Quando a gente gosta demais de alguém ou alguma coisa, quer ter aquela pessoa ou objeto. De qualquer jeito. E, de imediato, é comum que a gente não queira compartilhar o nosso gostar com o resto do mundo. Então, ter vira uma maneira egoísta de gostar. E essa forma de gostar não nos deixa conhecer os desconhecidos, explorar as ilhas, ancorar nossos barcos.


Noite de sábado chegando, aquela magia do Guaíba e o azul do céu fazendo um espelho nas águas atrás da Usina animaram as três mulheres - depois de sair do monólogo um tanto intimistas - a fazer um happy. Na parada do ônibus, fomos obrigadas a entrar rapidamente num táxi para escapar de alguém que não teve chance de ir atrás do desconhecido, não teve com quem compartilhar, e nos ameaçava com um objeto cortante. Foi necessário sair da ilha para ver a ilha, que não vemos se não saímos de nós. Se não saímos de nós próprios.              

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

Comentários