A. B. Cético

AlívioO pescoço se ajusta ao desconforto do torcicolo na razăo direta da inflexibilidade dos pontos-de-vista do despescoçado. BocejoE se em vez de sono eterno …










Alívio
O pescoço se ajusta ao desconforto do torcicolo na raz?o direta da inflexibilidade dos pontos-de-vista do despescoçado.

Bocejo
E se em vez de sono eterno a Morte for uma insônia sem-fim?


Condiç?o
Todos têm direito a um bálsamo nesta vida. Quero dizer, todos que pagarem por um embalsamador.


Decisivo
N?o haverá bom senso sobre rodas enquanto n?o houver bom senso a pé.


Exceç?es
Nos hospitais, clínicas e casas de saúde, entre mortos e feridos salvam-se sempre os médicos, as enfermeiras e o pessoal administrativo.


Fertilidade
Somos todos frutos da seleç?o natural, gerados pelo espermatozóide mais capaz. Imaginem se n?o fosse.


Greve
A sensibilidade do funcionalismo público da saúde é extremamente sensível com o funcionalismo público da saúde.


Heroísmo
Ressuscitar após um coma profundo - n?o é todo mundo que tem tamanha coragem.


Inconsciência
N?o importa com quê você venha a rechear seus travesseiros. Nada acomoda melhor uma cabeça que miolo mole.


Jejum
A humanidade suporta fome há milênios. A humanidade n?o suporta fome de uma semana.


Lembrete
Os alertas sobre as doenças sexualmente transmissíveis s?o melhor passados boca a boca, assim como algumas moléstias.


Medida
Expectativa de vida é como contar com o ovo do avestruz no fiofó do pintassilgo.


Navegaç?o
Como dizia o iatista ao índio em sua piroga: estamos todos no mesmo barco.


Óbvio
Solidários s?o sempre e cada vez mais solidários. Uns com os outros.


Prefixo
Para servir e proteger. Isto é, auto-serviço e auto-proteç?o.


Quadrúpede
Ferraduras caem como luvas em bípedes engravatados.


Recíproca
Infantilismo é quando as pessoas crêem em anjos. Idiotismo é quando anjos acreditam nos seres humanos.


Sabedoria
O que passou, passou. O que n?o passou, n?o há diarista que passe.


Tunda
O saneamento da política brasileira é paulatino. Devia ser a pauladas.


Utopia
O sistema é imbatível: produz progresso o suficiente para progredir mas n?o o bastante para produzir mais e mais progressistas.


Vice-versa
Zona rural é o território geográfico delimitado entre a terra sem lei e a lei sem terra.


Xadrez
De todas as estratégias de sobrevivência, diminuir o número de sobreviventes é a que sobrevive.


Zorra
Em matéria de princípios, parta do princípio que ninguém mais parte de princípio algum.


Como dizia o enchedor de ampulheta diante da duna do dia: nem tudo é interessante. N?o, n?o é. Mas pode-se falar de coisas desinteressantes com palavras inolvidáveis, que soem inesquecíveis. Ou por abordagens interessantes, ou de formas in-te-res-san-tes. Truque eficaz é repetir o tema central após dois pontos: o tema central ganha em expectativa. Também estacar o assunto. Devagar. Vezes várias. Paulatinamente. De modo que a fluência afaste o desinteresse de quem lê. Se n?o surte efeito, sabe o que se faz nessa hora? Uma pergunta. É interessantíssimo como amplia o grau de atenç?o, sobretudo se precedido de superlativo e sucedido de um ponto de exclamaç?o! Interessantemente aplicados, até advérbios no meio de uma frase iniciada com um deles, funcionam. Se estiver faltando impacto, use a palavra impacto, mas com impacto. Assim se vai construindo, oraç?o após oraç?o, um bloco que começou do nada, criou aqui e ali zonas de fixaç?o e mesmo sem climax mantém o clima. Pois os interessados querem porque querem avançar, atingir o ponto final, eles sabem que enquanto a ele n?o chegam nem tudo está perdido, raciocinam. A essa altura, em poucas dezenas de linhas, algumas centenas de palavras, mais ou menos um milhar de letras, o leitor reconhece no autor um interesseiro. Ele escreve para tentar cativar. Pretende seduzir pela induç?o. Tecla frases curtas. Vocábulos soltos. Livres. Simples. Plurais. Os argumentos finais se aproximam. O texto ameaça parar, porém, após três virgulas, prossegue. Novo trecho, novo ânimo, novo impulso; o poder de um único e repetitivo adjetivo! O foco de interesse, que n?o definhou porque n?o se definiu, reaparece (sugerido entre parênteses) para insinuar uma vitória textual. Interessadíssimo, o leitor pressente. A conclus?o vem aí. Afinal, se a ausência de assunto já preencheu uma lacuna inexistente, nada mais há a dizer. Como diria o enchedor de ampulheta: analisada de gr?o em gr?o, até a duna coaduna. Ponto final.

Autor
Fraga. Jornalista e humorista, editor de antologias e curador de exposições de humor. Colunista do jornal Extra Classe.

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