A idade da inocência

Hoje eu preciso de você com qualquer humor, com qualquer sorriso. Hoje só tua presença vai me deixar feliz. É que só hoje eu …

Hoje eu preciso de você com qualquer humor, com qualquer sorriso. Hoje só tua presença vai me deixar feliz. É que só hoje eu percebi, assim, como quem desperta para a vida que mais da metade do ano já se passou. E tudo parece que continua como antes. Com uma boa dose de otimismo. CPIs, denúncias em Brasília, aumento da violência em Porto Alegre, não sei mais quem é polícia e quem é ladrão, e tem homem comendo cachorro. O roteiro é quase o mesmo. Novos personagens. Novas decepções. Foi quando eu me encontrei pensando nos teus olhos de promessas fáceis e me perguntando quando é que perdi a inocência?


Não sei se foi por volta dos seis ou sete anos quando me comunicaram que Papai Noel não existia e não adiantava ficar pedindo presentes caros que o bom velhinho era um familiar fantasiado. Por algum tempo, fui enganada com aquela história de entregar a chupeta (era assim mesmo) ao Papai Noel e escrever cartas longas endereçadas ao Pólo Norte prometendo me comportar melhor no próximo ano. Com certeza, parte da inocência se foi ao me deparar com uma sangria mensal, que deixava incomodada não somente a sua avó, mas eu também.


É pueril demais confessar que um pedaço considerável de minha inocência partiu ao me apaixonar de verdade, e depois de alguns meses de namoro e puro encantamento descobrir que a paixão é efêmera e que pode acabar primeiro em um dos dois parceiros. Sem aviso prévio. A primeira paixão a gente nunca esquece.  E nem os momentos de fossa. Chorei dias e dias ouvindo a música "Atrás da Porta", do Chico Buarque, cantada pela Elis Regina e que persegue a minha trajetória amorosa até hoje, nas suas idas e vindas.


Mais tarde, deixei pegadas de inocência na difícil arte de encontrar o primeiro emprego. Sorrisos de inocência foram embora ao compreender que as amizades, importantes demais na construção de valores, nem sempre seguem os mesmos passos que os nossos. Impossível assinalar o momento exato em que se perde o último fio de inocência que brigava com as responsabilidades da maturidade e insistia em nos habitar. Não tem data marcada. São pequenos acontecimentos que nos jogam para uma vida mais árida e cruel, que não rima com inocência.


De repente, não mais que de repente (já dizia Vinícius), um pouco antes de conhecer os "enta", fui surpreendida com uma visita inesperada. Ao tocar da campainha e abrir a porta, vi entrando, sorrateira, a inocência que fui perdendo ao longo dos anos. E não adiantava eu dizer que "não tava nem aí" para esse momento ternura de reencontro com a inocência. Com a mesma cara-de-pau de quem me abandonara anos atrás, ela foi se aninhando na minha rotina, como uma posseira.


Reencontrei a inocência no menino que me explicou, com naturalidade, que não tinha medo de banhar-se nas águas não-balneáveis da Prainha do Gasômetro. Reencontrei a inocência ao me permitir novos momentos de prazer e aventuras amorosas e sexuais. Escrevo com inocência ao redigir minhas matérias no jornal de forma a torná-las mais transparentes e elucidativas. Adormeço com inocência ao deitar a cabeça no travesseiro e conseguir dormir em paz, sabendo que fiz o melhor naquele dia, e rezar para que o novo amanhecer traga mais ternura, paz, saúde e justiça social.


A inocência mais persistente tem quase 1,40 m, corpo frágil, olhos azuis cheios de esperanças, um baú de perguntas e vive comigo todos os dias desde que entrou sorrateiramente pela porta de minha casa. Na inocência da minha filha Gabriela é que eu alimento e mantenho a inocência que um dia eu tive na integridade e deixei escapar. No sábado à tarde, após tanto tempo por motivos alheios a nossa vontade, conseguimos reunir toda a família, ao redor da anfitriã, minha mãe, que ainda acolhe todos com o mesmo carinho de quando éramos pequeninos.


Irmã e irmão, amiga e cunhada, sobrinho e afilhado Rafa, sobrinha e afilhada Mila e o namorado, filha Gabriela, aninhados ao redor da mesa de vidro, onde repousam os cactos que minha mãe cuida com muita dedicação. Ali, soprava um ar de inocência, que unia três gerações diferentes, com tantas diversidades, tantas aspirações distintas, tantas opções políticas diversas, e ainda muitos sonhos e utopias.


É por isso que na terça-feira, ao redigir esse texto sobre inocência, lembrei-me do depoimento de José Dirceu na Comissão de Ética, e rezei para não perder mais nenhum restinho de inocência e conseguir, quem sabe, ainda, manter vivos meus sonhos e utopias.

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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