Loucuras de agosto

Os presságios de agosto despedem-se com o seu final, popularmente conhecido como mês do cachorro louco e do desgosto. Para arrematar com chave de …

Os presságios de agosto despedem-se com o seu final, popularmente conhecido como mês do cachorro louco e do desgosto. Para arrematar com chave de ouro, só faltava mesmo uma sexta-feira 13 neste agosto de 2005, diriam os pessimistas. O mês começou imerso em CPIs para desvendar tropeços em Brasília, com um clima totalmente instável sem ser inverno nem verão, desculpas do presidente Lula, vendas do comércio reabilitadas e muitas incógnitas. Juro que não cruzei com nenhum cachorro louco, alguns à procura de aconchego, nem tive muito desgosto, apenas os desencontros diários.


O mês termina com Brasília inundada em mais CPIs, mas pelo menos estão tentando limpar a sujeira e desta vez não é para baixo do tapete. Vale a pena lembrar que muito se lutou para se chegar neste estágio democrático de vasculhar os atos políticos. Agosto se encerra com o presidente Lula em dívida com os seus eleitores, mas vamos confiar que ele ainda vai encontrar um jeito de salvar o Brasil de certezas pré-gravadas. E como sugere Nei Lisboa na música Utilidade das Palavras, vamos salvar o pensamento de alianças com carrascos e casamentos com carrancas. Sempre é tempo.


Como sou otimista, avalio que os meus dias se passaram com altos e baixos na mais completa rotina. E nem senti. O mais preocupante é isso. A velocidade de fórmula 1 que 2005 está percorrendo. Em breve, será tempo de primavera, de colher avencas, azaléias e cuidar melhor dos cactos de mamãe, que enfeitam a mesa da sala. Em breve, será a vez de dizer sim ou não ao desarmamento no país, como se isso fosse a solução para o final da violência (não estou defendendo nenhuma posição). Logo, assalariados estão correndo para cobrir seus pré-datados e pagar papagaios para assumir novos compromissos para o Natal.


Talvez, por isso, as promessas de desgosto do mês não cheguem a me desanimar. Agosto funciona como um marcador de etapas. Páginas viradas de um livro. Um capítulo para lembrar que ninguém deixa de viver esperando as tragédias acontecerem e que ainda tenho tempo para sair atrás de meus sonhos. Um capítulo com novas chances para que as CPIs sejam decisórias e o povo não deixe a esperança ir embora suja nesse mar de lama. Um capítulo com as pautas que ainda vou cumprir, da melhor maneira possível, e outro me alertando que tenho dias para plantar utopias e comprar gérberas para enfeitar meu quarto.


Seria loucura ver estampado no rosto de deficientes visuais a felicidade ao receberem uma doação de livros em braille? Pois, eu vi. Ou seria loucura eu descobrir que ainda tem muito verde nessa mãe gentil para ser preservado? Descobri isso numa pauta. Ou seria loucura ou desgosto eu descobrir que preciso ser mais gentil e retribuir alguns afetos? Claro que não. Assim como quase foi loucura a minha vontade de dar um beijo na boca na frente de todo mundo ao reencontrar uma antiga paquera numa coletiva de imprensa. Mas, se é o mês da loucura, tudo é permitido ou não? Até beijar você no meio da coletiva onde todo mundo iria ver.


Se agosto leva a fama de desgosto e loucura, seria demais me imaginar em Passo Fundo encontrando o Chico Buarque e seus olhos sedutores, na Jornada Literária, cantando só para mim João & Maria? Isso já é demência. Ou parte de um sonho. E quem tem um sonho não dança nem é louco. Pois só os sensíveis têm capacidade de manter a mente aberta para alinhavar os sonhos mais loucos e erguer castelos. Sim, foi loucura de mãe coruja, presenciar a minha filha brilhar nas semifinais esportivas do colégio. Plenamente recompensada ao lhe explicar mais tarde, e conseguir que ela compreendesse, que nem sempre se ganha todas na vida.


As entradas do meu rosto e os meus primeiros cabelos brancos (que eu disfarço muito bem) aparecem a cada ano no final do mês de agosto. É irreversível. Longe de ser desgosto ou loucura, é um sinal de maturidade e um divisor de águas. Há 20 anos, Rafael, meu sobrinho e afilhado, nasceu e eu ainda guardo seus primeiros cartões, fotos de todas as suas travessuras, trabalhos na creche, aquele azulejo pintado de verde pendurado no meu quarto. E agora que ele cresceu, não se parece nada com aquele nenezinho que fincou, definitivamente, agosto como mês de alegria no meu calendário.

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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