Você tem sido gentil?

Nós que passamos apressados, pelas ruas da cidade, merecemos ler as letras, e as palavras de         Gentileza, canta Marisa Monte, referindo-se ao José …

Nós que passamos apressados, pelas ruas da cidade, merecemos ler as letras, e as palavras de         Gentileza, canta Marisa Monte, referindo-se ao José Datrino, do interior paulista, mas que se mudou para o Rio de Janeiro ainda na juventude. Após uma tragédia, acreditou que recebera um chamado divino e dedicou sua vida a consolar as pessoas, ensinando-as a perdoar umas às outras. Largou família, negócios e chamava todos de gentileza, o que lhe rendeu o apelido. Alguns, ao vê-lo perambulando e mal vestido, classificavam o profeta Gentileza como mais um maluco deste país.


O profeta, que morreu aos 79 anos, lá pelos anos 90, costumava indagar das pessoas na rua: "Gentileza, você tem sido verdadeiramente gentil, ultimamente?". E prosseguia, sem medo dos olhares estranhos a lhe condenar: "Gentileza gera gentileza, demonstra educação, apreço". Pois bem, lamento confessar, mas não lembro a última vez que fui gentil com algum estranho, desconhecido, amigo ou até mesmo familiar. Às vezes, um sorriso, uma expressão educada é capaz de milagres e não custa nada. Só que a gente corre contra a corrente, até não poder resistir.


E sabem o motivo? Também não. Creio que é a pressa do tempo, o medo de ser mal interpretada, a falta de jeito de dizer coisas simples e que animam qualquer um, como: "você está bonita hoje", "que bom que você está aqui", ou até mesmo um "obrigada por telefonar". Gentilezas. Pequenas frases com duas ou três palavras que não tomam o tempo de ninguém e servem de bálsamo para todos nós. Afinal, quem não gosta de ouvir gentilezas? Será possível determinar em que momento o nosso coração ficou mais endurecido e enterrou as palavras gentis?


O mais triste é quando percebemos que um gesto, um toque ou uma palavra nossa, com mais ternura ou sem pretensão alguma, gera desconfiança. É um sinal de que há muito tempo você não exercita os ensinamentos do profeta Gentileza.  Mas, se quem sabe faz a hora, não espera acontecer, vamos mudar.


Um verdadeiro quebra-cabeça foi montado na minha rotina ontem sobre a necessidade de voltar a ser gentil, mostrar apreço pelas pessoas, deixar transparecer consideração em pequenos gestos. Antes de rumar, na minha caminhada diária para o jornal, precisava passar no colégio de minha filha para começar a equacionar um problema de relacionamento com um colega que aconteceu na sexta-feira. A professora de português, com quem falei, foi tão gentil e atenciosa, que saí de lá espantada. Não que as outras não sejam, mas era início do horário letivo e todos mostravam pressa.


Sobravam alguns minutos e eu precisava entregar um documento. Com hora marcada para não me atrasar na redação. A pessoa que tinha agendado comigo não chegava e fui surpreendida com a gentileza da faxineira que limpava o local e mostrava preocupação com o atraso em função do meu compromisso. Situação resolvida, literalmente voei cruzando as ruas do centro até chegar na Caldas Júnior, e nesta corrida maluca de saber que pautas me esperavam tilintando, esbarrei em diversas pessoas. Todas me pediram desculpa. Como assim? Eu que errei.


Na corrida, peguei o carro do jornal e junto com o fotógrafo fomos atrás de uma pauta nada gentil. Mas faz parte. Até encontrar o lugar, pedimos muitas informações e comecei a perceber que todos abriam um sorriso frenético quando eu acenava do banco traseiro agradecendo a orientação. Na volta para a redação, num exercício de puro e singelo divertimento, dei gargalhadas com as histórias contadas pelo motorista e o fotógrafo. Sem exagero, me contorcia de tanto rir.


Na redação, cumpri as outras pautas e me preparava para redigi-las quando olhei uma colega que estava longe e fui simplesmente conversar com ela. Sem nenhuma segunda intenção, sentei ao seu lado, e perguntei: "E aí, como está, tudo bem, como foi o final de semana?". É claro que ela me respondeu. E ficou, em seguida, me olhando com cara de espanto. E sem pudor nenhum disse: "O que tu vai me pedir para sentar e puxar conversa assim?". Definitivamente, não tenho sido nada gentil e nem demonstrado apreço pelas pessoas.


Sempre é tempo de corrigir os erros. Errar é humano. E reconhecer o erro, agora dizem que é brasileiro. Então, a todas as pessoas com quem deveria ter sido mais gentil, perdão. Perdoem a falta de tato, perdoem a falta de ar, perdoem a falta de espaço, os dias eram assim. 

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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