O patinho feio no tempo e o vento

Winny tem oito anos, passeia com duas tranças impecavelmente feitas no cabelo escuro de afro-descendente, e deveria saber pouco do mundo fora das fronteiras …

Winny tem oito anos, passeia com duas tranças impecavelmente feitas no cabelo escuro de afro-descendente, e deveria saber pouco do mundo fora das fronteiras do bairro Vila Nova, em Porto Alegre, onde mora com a família. Mas, a menina que abre um largo sorriso dispara que sabe muito bem soletrar seu nome, gosta muito de ler e sabe das coisas. "É assim, mesmo tia: w, i, n, n (dois, viu ?) e y, e eu adoro ler histórias", comenta, rodeada de amigos, todos da mesma faixa etária, que também querem espaço em uma das pautas que me foi destinada na terça-feira.


Véspera de feriado (para quem não tem plantão), a cidade ensolarada, nenhum crime acontecendo, fui fazer a reportagem sobre a 11ª Feira do Livro da Escola Municipal de Ensino Fundamental Vila Monte Cristo, na zona sul da cidade. Na feira totalmente montada pelos alunos do 3º ciclo da escola, a primeira em Porto Alegre a implantar o ensino ciclado na rede pública municipal há 10 anos, deparo com a pequena Winny. A feira, tradicional entre a comunidade do bairro, oferece livros de editoras com descontos que variam de 10% a 20%.


Alguns colegas de Winny - no período da pauta a feira era visitada pelos alunos do 1º ciclo (seis a oito anos) - conseguem voltar para a sala de aula com a sacola cheia de livros e, quem sabe, ainda algum trocado para o lanche no armazém. Depende da quantia que cada um levou para gastar na feira e da economia que fez. Na escada do andar em que acontece a feira, a direção da Monte Cristo decidiu homenagear alguns escritores famosos que têm datas comemorativas em 2005, como Erico Verissimo, Hans Christian Andersen e Miguel de Cervantes.


Na preocupação da escola em oferecer um estudo com ênfase na literatura e no envolvimento dos professores com os pequenos leitores é que o mundo de Winny fugiu das fronteiras do seu bairro. Franzina, ela aponta para uma foto na escada e me informa que aquele é Erico Verissimo, um escritor gaúcho famoso. Resolvo interrogar Winny (vou pegar essa garota, penso).  Pergunto se ela sabe o que escreveu o poeta e romancista espanhol Miguel de Cervantes, e Winny, sem titubear, responde que ele é o autor de Dom Quixote de la Mancha.


Surpresa com o conhecimento de Winny, começo a conversar com uma bibliotecária e indago: quais obras do Andersen que estão à disposição dos alunos nesta feira? Sofia, mais encorpadinha do que Winny, mas com aparência sapeca e afobada, cita "O Patinho Feio", "O Soldado de Chumbo"? e imediatamente pede ajuda para a bibliotecária porque já gastou R$ 8,00 e ganhou R$ 15,00 da avó. "Tá faltando para o livro que ainda quero comprar", reclama Sofia, com as bochechas vermelhas de tanta excitação.


Com as devidas diferenças, lembrei-me de como fiquei feliz ao comprar, com o meu dinheiro, alguns livros na feira da Praça da Alfândega. Cheguei em casa com a sensação de que o mundo todo cabia naqueles exemplares que eu trouxera na sacola. Lembrei que anos mais tarde, ao entregar o primeiro livro para a minha filha Gabriela, insisti que era importante o hábito da leitura, perfeitamente incorporado hoje em sua rotina de 11 anos, e que quem se apaixona pela arte de ler já tem uma riqueza. E, por fim, recordei que sempre, nos aniversários dos colegas da Gabriela, costumo presentear com livros.


No mundo de Winny e Sofia, que estudam na mesma escola e regulam de faixa etária, e no de Gabriela, freqüentadora de outro colégio, em outro bairro e com mais idade - apesar de todas outras diferenças que possam haver ­-, cada novo conhecimento, palavra e acontecimento é, invariavelmente, respaldado por algum capítulo de uma obra literária. Ou pelo noticiário. Ou pelas revistas. Tudo mais movido pela ânsia de aprender e acumular do que pela curiosidade natural da idade.


Talvez, algum dia, as três se encontrem. E seus mundos se cruzem. Nada é impossível e taxativo. A generalização não leva a lugar nenhum. Um exemplo é que Winny e Sofia estudam em escolas cicladas e Gabriela, não. Pode ser que a paixão pela literatura as aproxime, no futuro. E pode ser que elas até percam, com a velocidade das novas tecnologias, o gosto pela leitura. Mas, com certeza, o mundo atual delas atravessa as paredes limitadas de suas casas e de seus poucos anos.

Autor
Márcia Fernanda Peçanha Martins é jornalista, formada pela Escola de Comunicação, Artes e Design (Famecos) da Pontifícia Universidade Católica do Rio Grande do Sul (PUCRS), militante de movimentos sociais e feminista. Trabalhou no Jornal do Comércio, onde iniciou sua carreira profissional, e teve passagens por Zero Hora, Correio do Povo, na reportagem das editorias de Economia e Geral, e em assessorias de Comunicação Social empresariais e governamentais. Escritora, com poesias publicadas em diversas antologias, ex-diretora do Sindicato dos Jornalistas Profissionais do Rio Grande do Sul (Sindjors) e presidenta do Conselho Municipal dos Direitos da Mulher de Porto Alegre (COMDIM/POA) na gestão 2019/2021. E-mail para contato: [email protected]

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