Inteligência artificial e o corretor do Word

É inegável que o corretor do Microsoft Word tem nos livrado de alguns vexames bárbaros. Mas ele tem levado a muitos erros também, não …

É inegável que o corretor do Microsoft Word tem nos livrado de alguns vexames bárbaros. Mas ele tem levado a muitos erros também, não menos bárbaros. Esses dias escrevi "virá-la". O corretor, impávido, me mandou trocar para "vi-la-á".


Mas o pior não é isso. Qualquer um desconfia que "vi-la-á" deve ser coisa do Jânio Quadros baixando no terreiro e foge a toda. Mas quando o corretor embesta com "a longo prazo", por exemplo? Essa expressão, manjada de séculos, está sendo trocada para "em longo prazo" simplesmente porque os jornalistas novos têm preguiça de olhar no dicionário, acham mais fácil confiar no corretor.


Eu apostava tudo na inteligência artificial, já que a outra deu no que deu. Mas agora, sei não. Não tenho coragem, por exemplo, de andar num desses carros computadorizados, que decide por si mesmo reduzir a velocidade se há buracos na rua ou buzinar pras mulheres gostosas. Vá que num cruzamento perigoso ele resolva que o correto é "vi-la-á" ou que uma operação ilegal foi cometida e o programa será fechado imediatamente. Se é pra morrer numa operação ilegal, prefiro assaltar um banco, ou buzinar por minha conta e risco, ora bolas.


Folguedos acadêmicos


Segundo Francisco Imbernón, "ser um profissional implica passar por um processo de profissionalização e ter um profissionalismo para dominar uma série de capacidades e habilidades especializadas que o fazem ser competente num determinado trabalho". Ufa.


Não seria mais simples dizer: "Um profissional deve aprender a dominar as habilidades de sua área"? Ou "Um profissional tem domínio de sua área"? Ou mesmo, com um ar de tédio profundo, "Um profissional é um profissional"?


Sexo e humor


Esses dias falei da falta de humor nas cenas de sexo na literatura e no cinema. Aí descobri que o Renato Aragão, o comediante mais conhecido no Brasil, escreveu um romance chamado Amizade sem fim (Mondrian, 2004). Lá pelas tantas uma enfermeira é desvirginada. Vejamos como:


"Quando ficamos completamente nus, puxo-a para a cama, com cuidado para não ir com sede demais ao pote. Mas ela contraria meu prognóstico, movimentando-se com surpreendente desenvoltura. A acoplagem dos corpos processa-se suavemente. Seu sangramento é pequeno, nada que atrapalhe a perfeição deste momento ímpar que estamos tendo o privilégio de usufruir. Permanecemos assim, por um longo tempo abandonados nos braços um do outro, como se de repente o mundo todo se resumisse a nós dois".


Mas humor involuntário vale?


Tarja Turunen


Se não fosse por meu filho, na sua fase metal-melódico, eu não teria conhecido a maravilhosa Tarja Turunen. Mas deixa pra lá. O que vem ao caso é que li no jornal sobre o último CD dela: "Com um alcance vocal único e extraordinária presença no palco, o seu disco, gravado em vários estúdios da Europa, é cheio de contrastes e variações, e com diferentes experimentações". Eu não sabia que a tecnologia tinha ido tão longe e jurava que os jornalistas diplomados eram cheios de contrastes e variações.


Deu no Coletiva.net


Esses tempos a Clô Barcellos falou dos diálogos nos filmes brasileiros: não se ouve nada. Eu não lamento isso, na maioria das vezes, porque o cinema brasileiro, como grande parte de nossa literatura, fala pouco e discursa muito. Deve ser o grande prestígio da Ordem dos Advogados nas nossas letras. Ainda hoje Rui Barbosa - que escrevia mal em várias línguas, começando pela sua - é considerado um herói.


Os acadêmicos e eu


Há um descompasso entre nós. Eu escrevo. Eles fazem uma produção textual. Isso se não estão tomados pelo demônio e não procedem a uma textualização.


Eu e os acadêmicos


Quando traduzo essa gentalha, dou o troco: não traduzo, procedo a uma translação idiomática.


PS (a pedido de Mário Goulart, o Imparcial)


Claro que nem todos os acadêmicos são idiotas chapados. Muitos são apenas idiotas. Certo, Mário, certo, vou parar de brincadeira. Conheço uns três ou quatro que nem parecem acadêmicos: são inteligentes e divertidos.

Autor
Ernani Ssó se define como ?o escritor que veio do frio?: nasceu em Bom Jesus, em 1953. Era agosto, nevava. Passou a infância ouvindo histórias e, aos 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho:Robinson Crusoé. Em 1973, por querer ser escritor, entrou para a Faculdade de Jornalismo, que deixou um ano depois.  Em sua estréia, escreveu para O Quadrão (1974) e QI 14,(1975), publicações de humor. Foi várias vezes premiado. Desenvolve projetos literários para adultos e crianças.

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