Doçuras da meninice

A casa de minha infância, na rua Vasco da Gama, não existe mais. Era uma casa pequena, mas ali vivemos anos felizes e despreocupados. …

A casa de minha infância, na rua Vasco da Gama, não existe mais. Era uma casa pequena, mas ali vivemos anos felizes e despreocupados. Um portão de ferro e duas janelas com pequenos vitrôs verdes. Na parte da frente, uma sala de visitas, que raramente era usada, com um divã, duas poltronas e um birô de escritório, com as gavetas cheias de papéis de meu pai. A seguir, dois quartos e a sala de jantar, com a porta de entrada e o corredor, que dava para o portão de ferro.


Na sala, uma janela dupla se abria para o quintal dos fundos. Nela estavam os nossos maiores bens domésticos - um aparador com as pratarias da bisavó Alice, a cristaleira da mãe, o rádio Telefunken de 12 válvulas de meu pai e, a um canto, o luxo de uma geladeira Steigleder. Era a garantia de verões
com limonada gelada e a Bock de meu pai na temperatura certa.


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Mais adiante, o território da mãe - sua cozinha, com os imaculados azulejos brancos. A peça central era o fogão esmaltado Geral, a lenha, de onde saiam
comidinhas e guloseimas que eram nosso encanto diário.


Sobre a mesa de café, um vaso com samambaias e o indispensável fogareiro Primus a querosene. Nos armários, panelas, louças e copos arrumados por tamanho e por função. Um espaço absolutamente interditado para as nossas mãos irriquietas e desastradas.


Às seis da tarde, meu pai chegava do trabalho, jogava o chapéu Prada no sofá e entrava na cozinha, inspecionando as panelas de ferro, com a pergunta habitual:


" - E o que vamos ter para sobremesa?"


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A mãe aprendera os segredos da culinária campeira e caseira com a matriarca Ana Augusta. Na fazenda do Passo Grande, as filhas solteiras se revezavam na cozinha, principalmente quando meu avô convidava a peonada para comer com os homens da casa. Quando uma das moças era prometida em casamento, minha avó tirava do armário da despensa uma velha lata de bonbons Sönksen. Ali estavam guardadas centenas de folhas caligrafadas, com receitas da doçaria portuguesa, que ela colecionara durante décadas.


Eram receitas dos tempos de fartura - várias dúzias de ovos, muitos litros de leite e açúcar às conchas. A mãe sabia fazer aquelas maravilhas, mas quando chegaram os tempos difíceis, ela racionava os doces, reservando-os para os domingos e feriados.


Nos demais dias da semana, nos contentávamos com postre de vigilante, o prosaico goiabada-com-queijo, que meu pai fazia questão que fosse servido com goiabada cascão Jung.


Mas não era uma sobremesa de verdade. Éramos todos viciados em doces e em nossa rua o que não faltavam eram doceiras de mão-cheia. Ao lado, do número 307, da família Starosta, vinham os docinhos de mel e nozes de Dona Esther. No 321, o casarão dos Boralhos, a cozinheira Anna preparava deliciosos cannoli, um doce italiano, que eu não sabia do que era feito, mas que era uma perdição.


Um pouco mais adiante, nos esperavam outras maravilhas para alegrar nossa gula. No Armazém Vasco, na esquina da Felipe Camarão, por alguns níqueis, o português Manuel Pereira nos vendia saquinhos de papel com mandolates e balas quebra-queixo.


Mas não deixávamos de lançar olhares compridos para o alto das prateleiras, onde se alinhavam grandes potes com frutas cristalizadas: de pêssego, figo e
casca de laranja.


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Ao lado do Armazém Vasco, ficava o mercadinho de Dona Bertha. Vendia coisas comuns, mas a atração era um armário envidraçado, onde se alinhavam docinhos de amendoim, batata, coco, abóbora. E ali também, ficavam expostos os doces folhados chamados mil-folhas, que eram os únicos que não dava para comprar com os níqueis da minha mesada.


Quando as bandejas estavam no fim, Dona Bertha separava o último dos mil-folhas para os filhos David e Moshe, que se regalavam a mais não poder, falando, para quem quisesse ouvir, que aquele era o melhor doce da cidade.


Eu ouvia aquilo e voltava para casa, imaginando se os mil-folhas eram assim tão especiais. Quando perguntei a minha mãe se ela sabia fazer mil-folhas, me olhou com um ar divertido, mas não respondeu.


***


Meu jejum de doces estava por terminar. Quando anunciei que tinha tirado boas notas nas provas, minha mãe disse que eu ganharia de presente um prato de doce, mas não disse qual. Esqueci-me da promessa, mas na manhã de meu aniversário, acordei com um cheiro perfumado que vinha da cozinha.


Corri até lá e vi que ela mexia em uma grande panela de ferro, usando uma colher de pau. Espiei e quase chorei de alegria - eu conhecia aquela mistura borbulhante e dourada. Minha mãe estava preparando o presente prometido - uma panelada de ambrosia.


Fizemos uma festa, a família almoçava com um olho no prato e outro nos potes em cima do armário. Foi um dos melhores presentes de aniversário de que me lembro. Até fiz de conta que não notei que meus pais passaram dias tomando café preto. A mãe havia gasto a cota de leite do mês naquela inesquecível ambrosia.

Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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