Os Remadores e a Victrola

As reuniões das segundas-feiras no Bar Lilliput começaram a ficar cada vez mais espaçadas e, quando aconteciam, em nada sugeriam a alegria e a …

As reuniões das segundas-feiras no Bar Lilliput começaram a ficar cada vez mais espaçadas e, quando aconteciam, em nada sugeriam a alegria e a irreverência dos bons tempos. Tudo acontecera depois da morte do comodoro Carlo Becker, fundador, que era alma e fogo do "Ruder Verein", o grupo dos remadores que amavam regatas, ópera e cerveja.


Mas, como tudo na vida, a melancolia foi aos poucos se dissipando e eles logo se recompuseram, em busca das antigas alegrias.


"- Estamos ficando velhos", disse um.


"- E o pior, estamos bebendo pouco", arrematou outro.


***


Mas a joie de vivre chegou pr"a valer, quando o Günther Haas entrou no bar. Ele era o mais animado de todos, o mais madrugador e, de longe, o melhor bebedor de cerveja. Ao deparar com as caras desanimadas, disparou meia dúzia de palavrões em alemão, indagando se aquilo era um velório ou uma reunião de saudáveis biertrinkers.


E, sem esperar resposta, mandou o garção renovar as canecas e trazer mais pão preto e um grande prato de rollmops. E voltando-se para os outros:


"- Amigos, a vida é curta demais e não vale a pena chorar pelo leite derramado. O Carlo era alegre e não gostaria de ver vocês com essas caras." E emendou, recordando os momentos de camaradagem que viveram, como quando fora preciso quebrar o gelo do Guaíba com os remos, antes de lançar os barcos. Ou então, quando eles enfrentaram no muque os estivadores do porto, que tentaram impedi-los de correr as regatas.


***


Na hora de ir embora, alguém perguntou pela Victrola RCA que tocava  nas reuniões em Teresópolis. Eles sentiam falta daquelas noitadas, onde ouviam discos de ópera e discutiam por horas sobre quem era o maior, Verdi ou Wagner. Eram inocentes noitadas à moda antiga, um grupo de homens velhos que se sentiam jovens, ouvindo música, bebendo chope escuro e contando estórias de tempos gentis que não existiam mais.


E antes da noite terminar, sentavam-se à mesa, para devorar os pratos de tagliatelli da cozinheira Assunta, com os inesquecíveis molhos alla carbonara, alla genovese, al funghi e al pesto.


***


Enquanto ruminavam a memória daquelas noites, veio a idéia de uma visita à viúva do amigo. Talvez ficassem sabendo por onde andava a Victrola e os discos de ópera. No sábado de manhã, sairam para Teresópolis, apertados na Lancia do professore Paglioli e no Adler seis cilindros do "alemão" Haas. O dia estava nublado e o minuano soprava do Guaíba.


A viúva os esperava na entrada do casarão e recebeu em silêncio o ramalhete de narcisos. Na sala, a conversa foi de monossílabos até que foram servidos de chá e biscoitos de polvilho. Bebericaram o chá, mas não tocaram nos biscoitos. Quando as chícaras foram pousadas, o gringo Truda ofereceu a ajuda do grupo para qualquer necessidade. Mas não era preciso - garantiu a viúva -, o falecido deixara renda e os visitantes não precisavam se preocupar com ela.


Neste momento, alisou o elegante vestido de seda preta e falou em voz sumida:


"- Mas, os senhores poderiam me ajudar em um assunto delicado".


Os remadores se inclinaram para a frente.


"- Estou sem saber o que fazer com a vitrola do Carlo. Não sei como funciona e nem gosto de ópera. Posso perguntar se aceitariam ficar com ela e todos os discos ?"


***


A chuva continuava a molhar as ruas ainda desertas, quando os carros estacionaram na frente do Novo Hotel Jung. Retiraram dos porta-malas a Victrola e a pilha de discos e levaram para o bar. Deram corda no aparelho e escolheram uma ária de Verdi, cantada por Tito Schippa. Porém, ao colocar o braço sobre o disco, deram por falta da agulha. Procura daqui, procura dali, encontraram a pequena caixa de metal das agulhas. Mas estava vazia!


Duas rodadas depois, eles ainda não haviam encontrado solução para o problema da Victrola. Voltar até o casarão de Teresópolis estava fora de questão. E se fossem até a Casa Beethoven, ali na Galeria Chaves, sugeriu alguém. Outro retrucou que lá se vendiam pianos e partituras. Eles ficaram bebendo em silêncio, até um deles lembrar que sábado era dia de ficar com as famílias.


Com todo o cuidado, colocaram a Victrola em uma prateleira e pediram ao garção Fritz para guardar os discos na dispensa. Sairam à rua e correram para os carros, debaixo da chuva que caía mais forte.


***


Ano após ano, a Victrola permaneceu em seu canto do bar, silenciosa, mas bem à vista dos remadores. Uma vez ou outra, um deles erguia um brinde às cada vez mais distantes noitadas de ópera.


Quando o Lilliput fechou as portas, o grupo de remadores trocou de bar e a Victrola foi vendida para um brique-a-braque.


* J.A.Moraes de Oliveira é jornalista e publicitário.

Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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