Copiando Hemingway

Um dos grandes prazeres do viajante – talvez o maior deles – é entender a alma das cidades que visita. Para quem se interessa …

Um dos grandes prazeres do viajante - talvez o maior deles - é entender a alma das cidades que visita. Para quem se interessa em saber onde está pisando, pode ser mesmo um prazer inesgotável. Viajantes mais experientes aconselham escolher bem a cidade que nos propomos a decifrar, evitando cidades-enigmas como Praga, Dublin ou Londres, vielles dames bem vividas, mas que matreiramente ocultam aos visitantes seus segredos e encantos.
O melhor é buscar cidades amáveis, aquelas que se revelam com facilidade, baixando sem recatos o véu de seus segredos. Até mesmo nestas cidades amáveis, é preciso tempo e diligência, dias livres e despreocupados. Então - como em qualquer rito de conquista - quando por fim acontece o desnudamento da dame, ela se revela um amor duradouro, que reserva prazeres e enlevos a cada revisita.
Por outro lado, se estamos afoitos e sem vagares, somos compelidos a nos contentar com obviedades, chegando à hora da partida com malas pesadas e sem imaginar os mistérios que deixamos para trás.

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Cidades amáveis? Entre muitas, New York, Paris.

O escritor norte-americano O. Henry mostrou que não é necessário ser um nativo para desvendar a geografia sentimental de uma grande cidade. Ele perambulou por muitos lugares, antes de se estabelecer em New York, no início do século 20. Viveu ali por poucos anos, escrevendo contos semanais sobre as pessoas comuns das ruas e das tabernas. São textos carregados de encantamento com as belezas e tragédias da cidade, que a maior parte dos habitantes não percebiam, mas que ele descrevia com paixão.

Por sua vez, Paris foi abençoada pelo talento dos intelectuais da "Geração Perdida", que pintaram ou escreveram sobre a cidade que os acolheu. Muitos, como F. Scott Fitzgerald, produziram textos magistrais, mas quando Ernest Hemingway juntou-se ao grupo, Paris ganhou um grande amante e um inspirado cronista. Para ele, a melhor maneira para se fazer íntimo de uma cidade é postar-se em um velho quartier e gastar o tempo, observando a vida passar.

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Relendo "Paris é uma Festa", me senti tentado a seguir as pegadas de Hemingway pela cidade. Comecei com uma visita a Shakespeare & Co., a célebre livraria onde Sylvia Beach recebia os amigos e seus protégés D.H. Lawrence, George Antheil, Man Ray, James Joyce, Henry Miller e Ezra Pound.

Depois do fechamento em 1941, lamentavelmente a livraria nunca mais ostentou o charme dos années folles. Mudou-se do número 12 da Rue de l?Odéon, para a Rue de la Bûcherie, próximo à Place St. Michel. Mesmo assim, merece uma visita, para apreciar as prateleiras abarrotadas de velhos livros de poesia do "Poet's Corner", onde Hemingway começou a escrever "Adeus às Armas".

Já quase na hora do almoço, continuei pelo Boulevard du Montparnasse, até a La Closerie des Lilas. Ali, em uma das mesas da esplanada, Hemingway escreveu em seis semanas "O Sol Também Se Levanta". O lugar ganhou fama, está sempre lotado e a comida não justifica os preços cobrados. Mas o ambiente ainda conserva o ar dos anos 40, quando Gertrude Stein e Alice B. Toklas, Pablo Picasso e Paul Cézanne, passavam dias conversando sobre pintura, literatura e poesia.

Em algum lugar no fundo da brasserie, completamente anônimos, Lenin e Trotsky jogavam xadrez.

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Continuando a garimpagem, vou de metrô até a Gare de Lyon, onde os originais de "Adeus às Armas" foram roubados, obrigando o escritor a reescrever a famosa novela, que resultou mais densa e amarga, reflexo dos males físicos, decorrentes de sua vida aventureira. Procuro na livraria da estação, mas não encontro nenhum livro dele.

Na volta para a Rive Gauche, tento em vão localizar o prédio do antigo Hotel Florida, onde Hemingway se hospedava quando correspondente de um jornal canadense, durante a I Guerra. Ele estava no Florida, quando a artilharia alemã começou a atirar contra a cidade. Pediu a um motorista de taxi para levá-lo até onde caiam as bombas. Mas, quando viu um obus destruir a fachada de uma igreja perto da Place de la Madeleine, se deu por satisfeito e foi para o bar do Ritz escrever sua matéria.

A proximidade de Hemingway com o perigo das guerras o tornou íntimo com as dores e tragédias humanas. Em uma carta, escreveu a Scott Fitzgerald:

"Nós, escritores, somos amaldiçoados desde o princípio e precisamos ser machucados de verdade, antes de poder escrever com seriedade. Devemos usar nossos ferimentos e nunca trapacear com os sentimentos. E tentar ser objetivo como um cientista."

Ele sabia o que dizia - suas perdas e sofrimentos o machucaram com tal brutalidade, que ele precisou de dez anos para exorcizá-los e, finalmente, transformá-los em belos livros.

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Encerro o dia no balcão do bar do Ritz com um Dry Martini, o drinque que o escritor, depois de algumas doses, dizia ser "a única invenção americana tão perfeita como um soneto elizabetano".

Quando o barman Colin Field prepara minha segunda dose, não resisto à provocação e pergunto se ele ainda usa a receita da época de Hemingway (gin a 18º C, doze gotas de Noilly Pratt e uma casca de limão torcida). Ele reluta um pouco, mas acaba admitindo que a receita clássica há muito foi modificada, para atender ao gosto dos frequentadores dos novos tempos.

Olho a foto do escritor na parede e lembro a frase memorável:

"Se você teve a felicidade de ter vivido em Paris quando jovem, então, onde quer que esteja pelo resto da vida, ela estará contigo, pois Paris é uma festa móvel."

Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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