Cole Porter e outros deslumbramentos

Depois de dez anos viajando para lugares prováveis e outros improváveis, aprendi que o que vale é trazer na bagagem algumas lições, que, mesmo …

Depois de dez anos viajando para lugares prováveis e outros improváveis, aprendi que o que vale é trazer na bagagem algumas lições, que, mesmo poucas, sejam duradouras. Viajei sempre a trabalho e nunca com tempo e serenidade para certos deslumbramentos dos quais necessitamos quando ainda somos jovens no coração. Uma das lições que guardo é a que ensina: quando um lugar se torna tão familiar que nos faz sentir confortáveis e à vontade, chegou a hora de fazer as malas e voltar para onde viemos.
Um veterano traveller, daqueles com quem eu esbarrava com frequência em salas de espera de aeroportos, falou-me da terapia que usava para compensar a distância de casa. Antes de cada viagem, fazia reservas em concertos e ficava em hotéis com restaurantes ou bares com shows ao vivo. Todas as noites, ouvia música, às vezes, até adormecer de cansaço. Deixava de lado as lojas e passava pelas vitrinas sem se deter. E dizia que assim, regressava com as malas mais leves e a alma carregada de emoções.
Gostei da medicina e passei a adotá-la. Comprovei que o homem tinha razão - a boa música é a melhor companheira para preencher os vazios que nos assombram quando passamos muito tempo na estrada. Com uma vantagem - malas carregadas de compras podem ficar pelo caminho, mas os "brief encounters" musicais permanecem.

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Foi na primavera de 1977, no antigo "Cockery", no Village, em New York. Aos 81 anos e quase 60 de jazz, Alberta Hunter faz uma pausa em sua apresentação e surpreendeu a todos, anunciando que iria parar de cantar.
Um "oooohh", como que orquestrado, percorreu a pequena plateia, logo seguido por demorados aplausos. Ela não fala nada e volta a entoar com voz rouca velhas baladas, do tempo em que trabalhava de dia como enfermeira em um hospital de indigentes e à noite, se apresentava em cabarés baratos. No final, a grande dama dos blues ainda se desculpa por ter esquecido a letra de algumas canções e encerra com a frase: "o jazz é para sempre".

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O teatro Beethovenhalle original era uma construção de madeira, às margens do Reno, onde Franz Liszt tocou a "Ode a Alegria", em 1845. Incendiado, a cidade de Bonn o reconstruiu para celebrar o 200º aniversário de nascimento de seu filho mais famoso. Em 1944, um bombardeio aliado o transformou novamente em uma montanha de cinzas. Mas a obstinação germânica prevaleceu e, em 11 setembro de 1959, o terceiro teatro é inaugurado exatamente no mesmo lugar.
Naquela noite de 11 de setembro de 1997, eu estava entre as centenas de pessoas, que lotavam o Beethovenhalle. No palco, o maestro Kurt Masur, à frente da centenária Orquestra Filarmônica de Bremen, se preparava para dar início a mais um Festival Beethoven.
E exatamente às 20 horas, os acordes iniciais da Sétima Sinfonia enchem a grande estrutura de aço e vidro.

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Em uma noite de outono, voltei ao Café Carlyle determinado a assistir Bobby Short. Para garantir os 120 dólares do "sitting tag", trocara um jantar no Club 21 pelo pantagruélico sanduíche de pastrami do Carnegie Deli. Não me arrependi, pois já no lobby do hotel a noite começava a revelar seus encantos. Em um sofá de veludo vermelho, uma elegante dama lia Marcel Proust - em francês.
O Café Carlyle está cheio, mas minha mesa tem uma bela visão do piano de cauda, decorado com um grande vaso de rosas amarelas. Bobby Short entra e curva-se diante do público. Usa sua gravata borboleta petit-pois e tem um cravo vermelho na lapela.
A "jazz host" Marian McPartland anuncia que haverá um convidado muito especial, mas não diz seu nome. Bobby Short canta "Guess Who?s in Town?", sua saudação musical. Faz uma pausa e chama seu convidado. Aproxima-se uma legenda viva do jazz, Benny Carter. As pessoas se erguem e aplaudem, quase em ovação.
E pelas duas horas seguintes, o saxofone dourado de Benny Carter chora em agradecimento. Cole Porter estava de volta ao Café Carlyle.

Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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