Dulce de Leche

Quando um navio da Navegação Dodero atracava em Porto Alegre, com porões abarrotados de trigo da Argentina, os escritórios de cabotagem da Avenida Mauá …

Quando um navio da Navegação Dodero atracava em Porto Alegre, com porões abarrotados de trigo da Argentina, os escritórios de cabotagem da Avenida Mauá recebiam caixas de papelão recheadas com preciosidades gastronômicas, desconhecidas pela grande maioria dos portoalegrenses. Os regalos cumpriam com perfeição sua finalidade: os navios da Dodero eram os primeiros a serem liberados de suas cargas.
Em nossa família, era fácil saber que o "Presidente Perón" ou o "17 de Octubre" haviam chegado. Era quando meu pai chegava em casa com um embrulho de papel pardo, atado com barbante encerado. A gente desatava aquele nó, sabendo muito bem o que continham as caixinhas amarelas, com o letreiro "Havanna" em vermelho.
Brincalhão, meu pai distribuía as delícias, imitando um speaker argentino:
"Estos son los alfajores Havanna, preciosas galletitas rellenas com dulce de leche y cubiertas com el más puro chocolate semiamargo".

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Ao ouvir meus elogios, o homem derramou um sorriso no rosto bonachão. Alisou o imaculado avental branco e fez uma mesura:
" - Señor, este é um legítimo tesouro da culinária argentina. O dulce de leche foi inventado há 180 anos, por mero acaso, nos tempos do General Rosas"
O chef-pâtissier sabia bem do que estava falando. Suas medias-lunas estavam crocantes e macias e o dulche de leche era uma mousse dourada e suave, lembrando as "confitures de lait", feitas com o melhor leite da Normandia.
Felizmente, não fiz a comparação em voz alta, pois, minutos depois, o garção depositou à minha frente uma bandeja repleta de fumegantes medias-lunas, escoltadas por uma generosa tijela de dulche de leche. Então, como se comandado por um maestro invisível, o conjunto de cordas iniciou um quinteto de Boccherini.

Não conheço melhor maneira de começar um domingo em Buenos Aires do que com o desayuno servido na Avenida Alvear, 1891.

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Há muito tempo, o doce de leite é uma obsessão nacional na Argentina. Foi declarado patrimônio cultural gastronômico pelo governo. Há alguns anos, a chancelaria argentina tentou aprovar uma lei para declará-lo "produto de denominação de origem". O Uruguai, grande produtor e voraz consumidor, se opôs e propôs considerá-lo como um produto exclusivo "do Rio da Prata". Mas os portenhos foram inflexíveis, convencidos de que o dulce de leche é tão argentino como o Boca Juniors.
E existem data e local para o nascimento do mito. Tudo teria acontecido no dia 24 de junho de 1829, na estancia "La Caledonia", em Cañuelas, na província de Buenos Aires. Naquele dia, uma criada do ditador Juan Manuel de Rosas preparava a lechada - uma mistura de leite quente com açúcar - que o homem mais poderoso da Argentina gostava de misturar ao chimarrão. Rosas tinha uma reunião com o general Juan Lavalle, que comandava os Unitários, envolvidos em uma sanguinária e interminável guerra civil contra o ditador.
O general Lavalle chegou cedo à sede da fazenda. Cansado pela longa viagem - e não vendo Rosas no casarão - deitou-se em sua cama, para uma "siesta". A criada de Rosas, ao ver Lavalle na cama de seu patrão, saiu correndo, gritando histericamente pelos guardas. Quando o mal-entendido foi explicado, a criada voltou à cozinha para encontrar sua lechada transformada em uma mistura espessa e dourada.
Os generais provaram e elogiaram. Estava inventado o dulce de leche.

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Em visita a Buenos Aires, é aconselhável não duvidar desta patriótica estória. Os argentinos rejeitam energicamente outras versões, que sugerem que a iguaria teria sido criada no Uruguai, Peru ou Bolívia. Algumas teorias históricas defendem que ocorreu no Chile, onde se chama manjar blanco. Outras versões dizem que foi criado no México, a popular cajeta.
Já um chef-pâtissier de um renomado restaurante no Brasil, sem esconder o sotaque normando, jura que o doce nasceu na França, tendo ocorrido por obra de incidente semelhante, na cozinha dos oficiais de Napoleão I. Por essa versão, o indômito corso teria propiciado muito mais benefícios à Humanidade além do Código Civil.
Dos dois lados do Rio da Prata criaram-se variados hábitos gastronômicos em torno do dulce de leche: recheando alfajores, acompanhando o pudim de leite, em panquecas, escoltando ou recheando os croissants, como recheio de bolos ou sobre o pão, no café da manhã das crianças. Ainda em forma de balas, de rapadurinhas, misturado ao iogurte, no leite ou no mingau. Mas a forma mais gratificante de saboreá-lo permanece aquela que nossas mães tanto reprovavam - devorado às colheradas, diretamente do pote.

Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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