O Caminhante

  A maltratada tenda à beira da estrada não chama a atenção de quem passa de carro. As tabuas a pique adquiriram a cor …

 

A maltratada tenda à beira da estrada não chama a atenção de quem passa de carro. As tabuas a pique adquiriram a cor cinza-prateado, mostrando a passagem de muitos invernos. Uma placa sobre a porta sugere mais do que um rotineiro ponto de venda de produtos coloniais. São letras toscas, desbotadas:

"Tenda do Fanor. Vendendo qualidade desde 1986".


O homem à porta da tenda diz que só vende produtos de fornecedores conhecidos, em sua maior parte, produção caseira dos sitios do vale lá em baixo. Ele elogia o mel de maçã, que vem dos altos do Cambará e exibe uma caixa com cogumelos frescos, cultivados ali perto, em uma fazendinha cercada de pinheiros centenários


O "seu" Fanor é um homem à moda antiga. Não gosta do som da televisão nem do rádio, e diz que prefere a voz dos amigos e clientes. Nunca fez curso de vendedor, mas por instinto sabe de longe se o visitante é um apreciador de ovos frescos de galinha capira ou de maçãs sem agrotóxicos - ou apenas um turista atrás de pechinchas.


Quando chega um grupo de pessoas com câmeras e filmadoras, ele se retira quietamente para os fundos da tenda e acende um palheiro. Mas, se perguntarem como prepara seus defumados, a conversa rende. Vaidosamente, descreve como os lombinhos e linguiças ficam durante três dias na defumadeira, onde só queima a melhor lenha de acácia negra.

 

                                                 ***

 

Em uma manhã, quando eu me entretia escolhendo alguns cogumelos, Fanor me chamou para os fundos da tenda. Apontou para fundo do vale e mostra um homem alto, com um grande chapéu de colono, caminhando entre os pinheiros. Seus passos são firmes e medidos, como seguindo uma trilha só por ele conhecida. Usa botas de cano curto e se apoia em um longo cajado. Senti que há alguma coisa naquele homem que eu já vi antes.


Ele olha para o alto e nos vê. Ergue seu cajado no ar, como quem sauda antigos amigos. Depois, some atrás das árvores, reaparecendo mais adiante e de novo, um pouco mais longe, um homem determinado que sabe para onde vai.

Devo ter feito uma cara de quem não entendeu nada. Indaguei a Fanor quem era o andarilho. Ele me corrige:


" - Não é um andarilho, é um caminhante ".


E antes que eu abrisse a boca para perguntar a diferença, explicou:


" - O andarilho anda sem destino, só pelo prazer de andar. O caminhante conhece seus caminhos e sabe para onde vai".

Disse que nunca havia se encontrado pessoalmente com o caminhante. Há uns tantos anos, ele o vê passar pelas trilhas do vale. Conhece sua rotina e gosta de esperar por ele, apenas para vê-lo erguer o cajado, em saudação silenciosa. Sempre nas semanas de lua nova, mesmo com sol forte ou cerração fechada, o caminhante percorre o vale, vindo de não se sabe bem de onde.

Tentei saber mais, mas Fanor não estava com muita vontade de falar. Acrescentou que o desconhecido costuma descer a serra, ladeando o Rio Caí e usando as trilhas do tempo em que não existiam nem estradas vicinais. Se alimenta de frutas silvestres e bebe a água dos córregos. Me despedi e prometi voltar na próxima lua nova para ver o caminhante passar.


Fanor não disse nada.

 

                                                ***

 

Saí dali mais intrigado do que curioso. Parecia que havia deparado com pessoas que simplesmente se recusavam a fazer parte dos dias de hoje. Em casa, vasculhei as estantes até achar um pequeno livrinho, presente de um frei dominicano, nascido em Leon. Ele viveu por alguns anos em Porto Alegre e cada vez em que nos encontrávamos, ele tentava me convencer a fazer o Caminho de Santiago.


O livrinho tem por título "El Guia del Caminante", um manual com data de 1955, contendo orientações básicas aos peregrinos. Alguns dos textos são transcrições de um primitivo documento chamado Codix Calixtinus. Ao olhar o livro, encontrei o que procurava.


De acordo com o manual, o peregrino, ao iniciar a jornada, deve pousar o cajado à direita e à frente de seus passos. Deve dar quatro passadas, procurando acompanhar as batidas do coração. Quando os passos ultrapassarem o cajado, repetirá o movimento. Assim, o peregrino não se cansará e seu próprio coração marcará o ritmo da caminhada.


Era isso que me pareceu familiar no homem do vale - ele caminha exatamente como um antigo peregrino.


Na próxima lua nova, preciso voltar à tenda do Fanor.

Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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