Compadritos e Farabutes

Poucos dias após aquela iniciação ao lunfardo no Café Tortoni, o amigo Carlito Irigochea me aparece com uma proposta para mais uma aula sobre …

Poucos dias após aquela iniciação ao lunfardo no Café Tortoni, o amigo Carlito Irigochea me aparece com uma proposta para mais uma aula sobre gíria. Aparentemente, o publicitário e jornalista adotara como seu dever patriótico mostrar ao visitante brasileiro como falam os moradores de Buenos Aires. E seu convite chega no mais provocativo estilo portenho:
"Vamos a morfar unos platos de ñoquis!"
E tudo está conforme o figurino local, um almoço foi marcado pelos lados de Palermo Viejo onde, me adverte, ainda se come à moda antiga, quer dizer, sem limitações de horário ou de quantidades.
Carlito avisa que teremos companhia - um señor Luis Cañas, membro da Academia Porteña del Lunfardo e, pelo que se diz, conhece mais sobre as falas arrabaleras do que todos os frequentadores do Café Tortoni reunidos.
Eu já aprendera que os portenhos adoram incorporar gastronomia e culinária em sua gíria diária. Quando alguma coisa tem qualidade, é "bien polenta". Quem vai a um "restorán" para "morfar" é um glutão, ou seja, um "morfón". Mas em lunfardo, se este mesmo glutão ostenta uma proeminente barriga, ele não tem uma "panza", mas sim uma "zapán", que é a mesma palavra falada ao contrário, pelo código "vesre", outro maneirismo dos lunfarderos. E a própria palavra "vesre" é "revés" dita de trás para frente.
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O lugar escolhido para nosso almoço é o "La Tiendita", que se parece mais com um armazém de secos e molhados do que um restaurante. Enquanto o especialista em lunfardo não chega, o dono da casa, Juan Giordano, nos convida para uns "chupes" e informa que aquele é o último "bodegón" que serve comida crioula no bairro. E, sim, estou certo, era um armazém nos anos 50 e que ainda guarda alguns troféus, como os tonéis cheios de lenha, que funcionam como aquecedores nas noites de inverno.
Ele lamenta que Palermo Viejo está ameaçado de perder sua identidade, com a desfiguração da arquitetura colonial, os velhos casarões e sobrados cedendo lugar a bares de moda e vitrinas de grifes.
Provoco um pouco o homem, para que fale dos velhos tempos do bairro. Ele não se furta, o lunfardo temperando suas lembranças:
"- Eram bons tempos, os nossos "compadritos" moravam perto, nenhum "farabute" ou "atorrante" se aventurava por aqui. As ruas do "barrio" eram "tranquilas" e "en esa cortada no pasaba um auto", andávamos de "bici na plazoleta, las chicas saltando la soga y esperando la camioneta para dar al cole". E, aos domingos, almoçávamos "bife de chorizo, lomo y batatas" com "gaseosa, soda o un porrón".
A nostalgia aos poucos cedeu lugar à gastronomia. Carlito quer saber da comida tradicional da casa. Juan Giordano lembra que, nos anos 50 e 60, era comum os clientes pedirem um dos "platos de Gardel", os "raviólis rellenos de vitela" ou "guisos y entrañas de ternera al carbón".
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Não seguro a curiosidade e quero saber o que vamos comer. Ele responde com olhos brilhando, mostrando o prazer de servir comida que ele mesmo prepara:
" -Vamos começar com o prato mais antigo na casa, o "puchero criollo", seguido por "Picante de Panza", preparado com mondongo de chancho. Mas, antes, vão provar as melhores empanadas de vitela de Buenos Aires".
E, sem perguntar nossa opinião, abre um Trapiche Roble Malbec, justificando que o puchero e o mondongo pedem um "vino peleón", o que quer dizer um vinho brigador. Vai até a cozinha e retorna com um prato de crocantes empanadas. Enquanto comemos, Giordano nos conta das várias versões da empanada crioula: a cordobesa, a de guisado de cordeiro, a que leva salsa chimichurri e a sua preferida, a "empanada de mi vieja", cuja receita ele jura ser a mesma desde 1950.

 

Quando chega a segunda garrafa de "vino peleón", sou tentado a pedir mais meia dúzia de empanadas, mas desisto, quando Giordano avisa que o puchero, depois de quatro horas de preparo, está pronto para ser servido.
Algumas horas mais tarde, quando saímos para a tarde luminosa de Palermo, Carlito olha o relógio e só então nos damos conta que o homem do lunfardo não compareceu para o almoço.

Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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