A dignidade de um clown

Antonio Abujamra morreu e eu perdi um amigo de toda a vida. Há pouco menos de 10 anos, escrevi aqui a coluna abaixo que …

Antonio Abujamra morreu e eu perdi um amigo de toda a vida. Há pouco menos de 10 anos, escrevi aqui a coluna abaixo que hoje republico.
Escrevi aqui que a mulher e eu fomos ver o Abu, no Centro Cultural Telemar, Flamengo, Rio.
Em 1957, chegando a Porto Alegre a convite do próprio, dirigi, do Paulo Hecker Filho, para o Teatro Universitário, "O Provocador". Antonio Abujamra fazia o narrador, algo como um prefácio.
Meses depois, dirigi "O Macaco da Vizinha", de Joaquim Manuel de Macedo. Julho do ano seguinte, Paschoal Carlos Magno promoveu o Festival Nacional de Teatro, no Recife, e o Teatro Universitário juntou, num só espetáculo, "A Cantora Careca", de Ionesco, direção do Abu, e o "Macaco?". Eu ensaiava "Romeu e Julieta" para um grupo do Glênio Peres e não fui.
O T.U. voltou com o título de melhor espetáculo do Sul e Abu com o de melhor diretor, o que lhe rendeu uma bolsa para a França, onde trabalhou com dois ícones do teatro: Jean Villar e Roger Planchon. Na Alemanha vermelha, foi conferir o Berliner Ensembler e o gênio de Brecht.
Depois do regresso, Abu deixava Porto Alegre e caía no mundo. Dirigiu mais de 100 peças e voltou a pisar no palco, ganhando prêmios como diretor e ator no teatro, no cinema e na TV.
Acho - tenho certeza - que televisão e cinema foram e são gratificantes, mas não a sua missão como homem de teatro. Quando eu o vi entrando no palco, depois de mais de 50 anos desse exercício diário de fazer o seu próprio caminho - antes mesmo de ouvir "A voz do provocador" -, eu já percebera a cumplicidade entre seus pés e o piso, como se apenas trocassem um "olá" cotidiano.
Terminado o espetáculo, algo me falou mais fundo que a inteligência e a lucidez do texto, do humor ácido do seu autor e do seu intérprete. Comecei, naquela rua do Flamengo, a tropeçar em emoções. Lembrei-me de vidas paralelas como as dos palhaços Piolim e Arrelia e me gratifiquei pelo fato de ser amigo desse clown da existência. Eu tenho sido testemunha dos passos de um iconoclasta que conseguiu prestar - em todos os seus caminhos - um tributo à coerência.
Abu - eis um cidadão que se recusa a comer um "prato feito" sem questionar se o prato foi feito da melhor forma. Um "provocado" que sempre responde à altura às provocações da realidade. Nele, inteligência, cultura, lucidez e talento unem-se à importância de estar sempre à frente da agitação, na contramão do marasmo, da falsa ordem e da verdade corrompida. Abu cumpre com absoluta dignidade essa tarefa dos eleitos.
Acompanho com carinho, com admiração - de longe, mas perto - a esse paulista-gaúcho, cidadão do mundo, que conheci ao pé da estátua de Minerva, no saguão da Biblioteca Municipal, agasalhado num casacão que o protegia do inverno paulistano. Anos depois, quando nos reencontramos, de camisa esporte, no verão carioca, ele mudou a minha vida ao inserir - para sempre - o Rio Grande na minha geografia afetiva.
Se algum leitor achar que exagerei nessas pobres pinceladas, não tenho culpa por esse leitor não conhecer Antonio Abujamra.
Ao final de "A voz do provocador", enquanto minha mulher e o público de pé  aplaudiam o artista, eu aplaudia o homem.
Inté.
*Este texto foi originalmente publicado em 11 de julho de 2005.

Autor
Mario de Almeida é jornalista, publicitário e escritor.

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