Uma noite com Hugo Del Carril

Naqueles tempos, lá estava eu, em meus verdes 17 anos, jovem demais para acompanhar os colegas mais velhos nas noitadas de Porto Alegre. Com …


Naqueles tempos, lá estava eu, em meus verdes 17 anos, jovem demais para acompanhar os colegas mais velhos nas noitadas de Porto Alegre. Com uma ponta de despeito - quase de inveja - eu observava a turma se preparar para as festejadas noites de sábado. Eram uns felizardos, portadores de alvarás que lhes permitiam ficar na rua até depois da meia-noite. Caprichavam no figurino, tomando emprestado paletó e gravata do pai e aplicando generosas camadas de Glostora nos cabelos, para imitar os cantantes de tangos e boleros. E lá iam eles, dizendo que iam ver as meninas.

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Para nós, os menores de 18, o sábado à noite reservava outro tipo de emoções - aventuras dos piratas de Emilio Salgari e misteriosos crimes de Edgar Wallace. Depois, era esperar pela segunda-feira, quando os aventureiros de sábado à noite se reuniam na esquina para contar das proezas e conquistas. Mas nunca chegavam nos detalhes e minúcias pelas quais suspirávamos. Eram apenas frases reticentes, entremeadas por risadas maliciosas e olhares cúmplices.
E nossa frustração ficava maior quando anunciaram que tinham ingressos para o próximo show da American Boite, a mais falada casa noturna da cidade, que apresentava cantoras e artistas famosos. E que estava anunciando uma noite de gala especial, com ninguém menos do que o tanguero Hugo del Carril.
Cabisbaixos e frustrados, caminhávamos de volta para casa, cada um calculando mentalmente os anos - ou meses - que faltavam para a chegada dos cabalísticos 18 anos. Então, chegou o grande dia, o muito esperado sábado, quando a cidade iria ouvir o grande cantor. A rádio anunciava repetidamente uma inédita transmissão ao vivo, diretamente dos elegantes salões da American Boite?
E lá estávamos nós, ansiosos ao redor do rádio Telefunken, ouvindo o speaker anunciar o primeiro show de Hugo Del Carril em Porto Alegre. Foi uma noitada que lembraríamos por muito tempo - um grupo de adolescentes cantando baixinho as letras dos grandes tangos da época: La Cumparsita, Mano a Mano, Cuesta Abajo, Mi Buenos Aires Querido?

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Passaram-se muitos anos e, em um certo dia, o mesmo grupo - agora mais adulto do que adolescente - ouviu a revelação que desmanchou no ar nossas velhas ilusões. Um dos remanescentes da turma dos 18 confidenciou - com um riso um tanto triste - que as façanhas noturnas que nos contavam não passavam de simples invencionices.
E saboreamos uma silenciosa vingança, quando ele contou ainda mais: que naquele sábado, o grupo havia sido barrado na porta da American Boite, que estava completamente lotada.
Por pura piedade, nem falamos da noite que cantamos tangos com Hugo Del Carril.

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Autor
José Antônio Moraes de Oliveira é formado em Jornalismo e Filosofia e tem passagens pelo Jornal A Hora, Jornal do Comércio e Correio do Povo. Trocou o Jornalismo pela Publicidade para produzir anúncios na MPM Propaganda para Ipiranga de Petróleo, Lojas Renner, Embratur e American Airlines. Foi também diretor de Comunicação do Grupo Iochpe e cofundador do CENP, que estabeleceu normas-padrão para as agências de Publicidade. Escreveu o livro 'Entre Dois Verões', com crônicas sobre sua infância e adolescência na fazenda dos avós e na Porto Alegre dos velhos tempos. E-mail para contato: [email protected]

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