A fecundação dos abutres e da Virgem Maria

Alguém argumentou que Cristo não podia ser filho de Maria se ela era realmente virgem: era contra a natureza, nenhuma criatura nasce sem a …

Alguém argumentou que Cristo não podia ser filho de Maria se ela era realmente virgem: era contra a natureza, nenhuma criatura nasce sem a união de um macho com uma fêmea. Basílio, futuro bispo de Cesareia, chefe da igreja na Ásia, no século 4, respondeu que "os abutres procriam sem essa união". Ganhou a discussão - porque Aristóteles havia afirmado que os abutres não copulavam, que as fêmeas eram fecundadas pelo vento. A autoridade de Aristóteles prevaleceu por séculos. Mas não foram apenas os teólogos cristãos que não foram examinar de perto os abutres ou a potência dos ventos.
Maus bofes
Sempre que se fala em sabedoria popular, me lembro desta expressão: maus bofes. A maior parte do que passa por sabedoria popular se chama conformismo, tacanhice, covardia. Mas a sabedoria popular existe, ou o instinto, porque muito antes de Marx atribuir tudo a fatores econômicos e de Freud garantir que o buraco era mais embaixo - embaixo do couro cabeludo, ou couros cabeludos? -, as pessoas sabiam que biologia é destino. Não é nada fácil para nós, criados à imagem de Deus, descer de nariz empinado a escadaria da versão romântica de nós mesmos e admitir que nossa amada alma possa, por exemplo, depender da falta ou excesso de açúcar, ou de seu mau processamento por nosso corpo, para ser atormentada ou não. Acho um bom exercício a gente não esquecer do fígado, estômago e outros miúdos menos votados na hora da metafísica. Ou vice-versa, por supuesto.
Crentes
O principal problema dos crentes é que esperam que todos nós vejamos a vida com os olhos deles. Ou melhor, o problema é que tratam de nos obrigar, às vezes com uma faca no pescoço, a ver com os olhos deles. Não adianta você argumentar que é o mesmo que um daltônico querer nos obrigar a ver o mundo colorido dele.
Curiosidade boba
Como um político ou empresário pode alegar inocência dando como prova a própria biografia, se são justamente trechos dessa biografia, gravados e selecionados pela Polícia Federal, que ilustram seus crimes?
O rabo da lagartixa
Todo mundo sabe, se a lagartixa fica com o rabo preso, o rabo se desprende e a lagartixa fica livre. Melhor ainda: dali a um tempo cresce outro rabo no bicho, que, em caso de novo perigo, também se desprende. Isso pode acontecer inúmeras vezes. O contratempo é no caso da perda do rabo ter sido numa situação de estresse: ele cresce menor. Mas duvido que uma lagartixa tenha uma vida tão longa e perigosa que acabe pitoca em sua melhor idade.
Os políticos e empresários morrem de inveja das lagartixas? Talvez, porque essa capacidade de libertação e regeneração é muito funcional. Mas o mecanismo desenvolvido pelos políticos e empresários também é uma das maravilhas da natureza: o rabo elástico - um rabo que estica infinitamente e dobra pra esquerda ou pra direita sem nem deixar marcas.
Fator de sucesso
George Moore, Jorge Luis Borges e tantos outros falaram da importância das lágrimas, ou do sentimentalismo a caminho da desidratação, como fator de sucesso na literatura. Sempre que me lembro disso, penso no "Meu pé de laranja-lima", do José Mauro de Vasconcelos, ou na orfandade do Bambi. Mas há outros grandes fatores de sucesso como o populismo. Vide Jorge Amado e Isabel Allende, por exemplo.
Dizem que não há fórmulas para o sucesso. Há sempre uma pitada de sorte, claro, mas basta ler os manuais de como escrever um roteiro para Hollywood para você ver umas duas dúzias de ingredientes de que não se pode abrir mão. Vai depender da habilidade com que se dosam esses ingredientes.
Acho que aí, na busca dos fatores do sucesso, está o tema para um grande ensaio. Pode ser que a gente continue, na prática, sem saber como fazer sucesso, mas vamos sair mais esclarecidos sobre nós mesmos e nossos vizinhos.

Autor
Ernani Ssó se define como ?o escritor que veio do frio?: nasceu em Bom Jesus, em 1953. Era agosto, nevava. Passou a infância ouvindo histórias e, aos 11 anos, leu seu primeiro livro sozinho:Robinson Crusoé. Em 1973, por querer ser escritor, entrou para a Faculdade de Jornalismo, que deixou um ano depois.  Em sua estréia, escreveu para O Quadrão (1974) e QI 14,(1975), publicações de humor. Foi várias vezes premiado. Desenvolve projetos literários para adultos e crianças.

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